Pouco a pouco a família apaga-se. É este o destino de todos nós.” Assim escreve o sobrinho de Ricardo Vinte e Um na carta em que o informa do falecimento de um familiar. Mas, tal como lembra a jornalista Catarina Gomes, “há outros tipos de apagamento” além da morte. Ricardo Vinte e Um foi como que riscado do mundo ao ser internado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa, em 1942. Tinha 46 anos. Ali permaneceu até morrer, mais de quatro décadas depois, aos 87 anos. A partir dos objetos que lá ficaram perdidos, a autora de Coisas de Loucos – O Que Eles Deixaram No Manicómio resgata esta história do esquecimento. Esta e a de outras sete pessoas que viveram encerradas no primeiro hospital psiquiátrico português, inaugurado em 1848 e desativado em 2011 – todas elas nascidas entre o final do século XIX e o início do século XX, numa época em que a psiquiatria pouco mais tinha para oferecer aos doentes além de tratamentos dolorosos e violentos, como a leucotomia ou a clausura ad aeternum. O primeiro psicofármaco da era moderna, a cloropromazina, só surgiria na década de 50 do século passado.
A escrita de Catarina Gomes aproxima-se dos melhores policiais, deixando o leitor em suspenso à medida que a acompanha nas suas descobertas. Será que vamos conseguir conhecer o rosto de Clemente da Costa Santos, internado em 1929, quando tinha apenas 27 anos? As deambulações entre o passado e o presente refletem um apurado trabalho de investigação, seja quando a jornalista vai ao encontro dos descendentes das pessoas internadas seja quando assiste a uma reunião de um grupo terapêutico de doentes com esquizofrenia. Ao fazer estes objetos esquecidos falarem, a autora “recusa a condescendência”, escreve no prefácio a escritora Djaimilia Pereira de Almeida, antes de acrescentar: “Fala dos outros como quem desce uma escada íngreme, ciente de que pode cair.” Afinal, o abismo pode morar dentro de nós.