João de Melo pertence à geração de escritores, afirmada nos anos 80 do século passado, que tomou a História de Portugal como tema. O passado (e até o presente) começou então a ser tratado de maneira muito diferente, longe da propaganda do Estado Novo. Essa geração de escritores, de que fazem parte, entre outros, José Saramago, Lídia Jorge, Mário de Carvalho e António Lobo Antunes, procurou sobretudo problematizar a identidade nacional e captar as mudanças em curso. E para concretizar esse objetivo socorreu-se de recursos estilísticos inovadores. Livro de Vozes e Sombras, o mais recente romance de João de Melo, vem provar a vitalidade desse projeto literário. Nele encontramos os temas que, de certa forma, têm ocupado o autor de Gente Feliz com Lágrimas, mas com novas abordagens, quer no cruzamento dos assuntos quer no seu desenvolvimento.
O que mais surpreende em Livro de Vozes e Sombras é o ponto de vista. Embora reconte a história recente de Portugal, o centro da narração está sempre nos Açores (mesmo quando se afasta do arquipélago). Os episódios são bem conhecidos, mas a forma como são sentidos, do Estado Novo à atualidade, passando pelo PREC e pela Guerra Civil em Angola, carregam o eco da insularidade. O pretexto para esta viagem é a entrevista que a jornalista Cláudia Lourenço consegue fazer a Mariano Franco, ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores. Ela quer um exclusivo, ele quer esclarecer equívocos. Ao longo desse jogo de forças, que é também de sedução, desfiam-se, numa recriação literária inédita, as origens e ações daquele movimento independentista, que via os Açores como “a última colónia do Império”.
São muitos os fios narrativos, espalhados por sete sequências de identidade própria, que João de Melo cose com maestria. A sua prosa demora-se nas descrições e nos ambientes para fazer sobressair um rico leque de personagens, em que ainda vale a pena destacar o sindicalista Manuel Cristóvão e a cega Ângela Mendes Pinto, esta que nos mostra um império a desfazer-se e a liberdade a construir-se. Síntese de um dos mais sólidos percursos literários das últimas décadas, obra feita de ilhas de memória do autor, Livro de Vozes e Sombras é um romance que nos interpela com as feridas (abertas ou saradas) do passado, agora que, num mundo cheio de divisões, se buscam novas formas de encarar o futuro.
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2020/06/livro_de_vozes_e_sombras-1.jpg)
Com o Livro de Vozes e Sombras (D. Quixote, 384 pág., €17,90), João de Melo chega aos 30 títulos publicados, entre romances, volumes de contos, poesia, relatos de viagem, crónicas, ensaios e antologias.