“Aqueles homens tinham sido treinados em oratória desde a infância”, lê-se aqui sobre as figuras da Guerra de Troia, conflito fundador de narrativas: Helena, casada com o rei de Esparta, é raptada pelo príncipe troiano Páris, provocando um banho de sangue liderado pelo temível Aquiles. A frase sintetiza a mensagem de O Silêncio das Mulheres mas também a constatação do cânone reinante: literatura e História universais são dominadas pelas versões e empreitadas de heróis, reis e patriarcas. O silenciamento de género é a espinha dorsal deste romance, que restitui a voz às mulheres: vítimas, espoliadas, moeda de troca no monopólio de conquistadores jogado na Ilíada de Homero. Esta versão do poema épico permite-se, aqui e ali, citar fragmentos da origem, mas o discurso é seco, cinematográfico, até banal por vezes, e estranhamente contemporâneo.
Briseida tem as marcas de uma traumatizada, mas nunca dispensa a lucidez. Às primeiras linhas, ela é ainda a rainha de Lirnesso, cidade vizinha de Troia, onde o grito de guerra de Aquiles ecoa, ameaçador, antes de as muralhas caírem e ele tudo trespassar com a espada, incluindo os irmãos dela. Oferecida como troféu ao lendário guerreiro, é quase sempre Briseida que revela as bainhas das batalhas épicas: a humilhação da escravatura, a objetificação feminina, os terrores de quem nada controla no seu destino, as regras da ideologia masculina a acumular corpos chacinados. No fim, há também a versão de Aquiles, mas tombado pelo desgosto de perder Pátroclo: os afetos não pertencem a um género, mas a política sim. O New York Times, crítico, chamou-lhe uma Ilíada para a era #MeToo. Talvez. Mas quantas vozes ainda estão por ouvir?
O Silêncio das Mulheres (Quetzal, 383 págs., €18,80) é o primeiro romance traduzido para português de Pat Barker, autora britânica multipremiada, que se define a si própria como um “camaleão” com origens familiares operárias