“Sobre o deão de Cález eu bem sei/ dos livros que lhe levam de Berger/ pois a quem lhos levava perguntei/ por eles, e disse-me porque os quer:/ com todos esses livros que ele obtém/ e com muitos outros que ele já tem/ costuma foder sempre que quiser.” Estas estrofes, pertencentes a Afonso X (nascido em Toledo, em 1221), poderiam ser reproduzidas num manual de autoajuda para a conquista amorosa por parte de gente tímida e dada à literatura: a bibliofilia é entendida como arma de sedução.
Acrescente-se, todavia, que é caso pontual: este cancioneiro medieval galego-português prefere temas e objetos mais vernaculares, saias arrebanhadas e hábitos religiosos amarrotados, adultérios e gentes apanhadas com a mão, ou outras extremidades, em corpo alheio, anedotas e troças, por vezes com todas as variantes, que alguns velhos palavrões podem ter. Sátiras, paródias, blasfémias, visando quer nobres quer povinho, incluem-se na matéria desta antologia arrumada e traduzida, pela primeira vez, segundo o tema do erotismo.
Mas nem tudo é assunto de cama ou possível inspiração para a loiça das Caldas. As palavras jocosas e os trocadilhos com duplo e triplo sentido (segundo os códigos da época) também funcionavam como arma política ou anticlerical, ou como consolo irónico face às desigualdades sociais, lembra Victor Correia, que chamou a si a organização, a tradução e o prefácio da presente antologia. “Ao contrário da imagem idealizada que geralmente se tem sobre a Idade Média, ao ser considerada uma época em que as pessoas só pensavam em assuntos religiosos, os cancioneiros medievais galego-portugueses, principalmente os poemas eróticos, destroem essa imagem, pois revelam que a Idade Média também era bastante profana, que na Idade Média também havia muito erotismo e, por vezes, até obscenidade”, diz. E, defende, estes textos são ainda atuais.