Pintada por Tarsila do Amaral (1886-1973) para o poeta Oswald de Andrade, Abaporu (1928) é a obra inaugural do período antropofágico do modernismo brasileiro (reclamador de pesquisa estética e linguagem livre das convenções literárias, de cultura deglutida): representa, em perspetiva distorcida, primitiva e picassiana, uma mulher sentada, a perna dobrada até ao pé colossal, junto de um cato gigante e de um sol bicolor. O título significa “homem que come gente” − metáfora que Alexandra Lucas Coelho serve, aqui, de várias maneiras.
É dessa pintura que nos lembramos nas primeiras páginas de A Nossa Alegria Chegou: entrelaçados numa rede, dois rapazes e uma rapariga (Adão e Eva e Adão?) falam das cores sem nome do sol (e tanto eles como outros personagens mencionarão os catos gigantes que prometem flores azuis − uma revolução, claro). “Ossi segura o flanco de Ira, que segura o flanco de Aurora. Ela fecha os olhos, flete o joelho esquerdo. Ira ganha ângulo e entra nela, com Ossi às costas. Primeira vez que acordam juntos, primeiro sexo a três, primeira hora de luz. Este dia esperou por eles para mudar tudo. Pacto.” Há um big bang à espera de acontecer (acentuado pela estrutura dos 12 capítulos em contagem decrescente, as horas do equinócio citado). Alendabar é um mundo sem coordenadas nem datas precisas (Amazónia?), povoado por mitologia e flora e fauna inventados (tartarugas-rosa, predadores alados denominados leque-branco, peixes tapus…), onde o povo oprimido não sabe se será vencido.
Usando uma linguagem sincopada, elíptica, sensorial e lírica (viva o modernismo brasileiro!), abrindo-se à presença do sexo e dos afetos, Alexandra Lucas Coelho criou uma tapeçaria, e uma cosmogonia atravessada por temas contemporâneos: este éden está conspurcado por plásticos e pela servidão a um rei (do gado); há gurus tecnológicos e Inteligência Artificial (não é Siri, é Jade); há empoderamento feminino; há Primaveras indígenas…
A Nossa Alegria Chegou (Companhia das Letras, 192 págs., €16,50) é o quarto romance de Alexandra Lucas Coelho, depois de E A Noite Roda (2012, vencedor do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores), O Meu Amante de Domingo (2014) e Deus-dará (2016).