Poderia Natália Correia ser “a nossa Dorothy Parker”? Carisma, bagagem cultural e língua afiada não lhe faltavam. A ideia improvável é suscitada pela reedição, revista e aumentada, de Descobri Que Era Europeia – Impressões duma viagem à América, em que estão agregados os vários registos de textos (diário, crónica, narrativa, poesia, oratória) escritos em 1950, 1978 e 1983 – datas das viagens feitas pela autora aos territórios do Tio Sam. O texto principal, fixado a partir da primeira versão existente na biblioteca de Natália (que esta, refere a responsável pelas notas, Ângela Almeida, “deixou repleta de anotações com vista a uma nova edição que nunca chegou a concretizar”), corresponde à sua primeira viagem aos EUA. Estava-se em junho de 1950: Natália era uma beldade lúcida com 26 anos, protagonista de uma “cidadania ativa”, e encontrava-se casada com um jovem norte-americano, William Creighton Hyler, meteorologista da TWA. Situação civil que facilitava a missão de que fora incumbida pelo “Mestre” António Sérgio (1883-1969): pedir a colaboração do líder do Partido Socialista norte-americano, Norman Thomas, para a luta pró-democracia e antissalazarista. Mas este, diz a autora, revelou-se um desiludido que a levou a passear nos bairros luxuosos do operariado do país, com Cadillac estacionados à porta.
A América excêntrica, de que ela ouvira ecos na adolescência nos Açores, revela-se-lhe um mito, em que a alma americana brilha nos vencidos da vida ou nos escritores. Passeando por entre museus, drugstores (onde o nada e o tudo se equivalem), a sede das Nações Unidas ou o Maine (onde, talvez, a “velhice seja doce como o sono duma ave cansada”), Natália discorre, sempre vivaz, sobre racismo, existencialismo, filosofia e literatura, sobre as diferenças entre os dois continentes e sobre os americanos como “seres por revelar” – e tem a epifania da “raiz europeia”, da cultura estética em que se identifica. Tudo confirma, na última visita, 30 anos depois. Uma viagem ética e intelectual, a que não falta a observação implacável, o colorido das personagens (de filme?), os fac-símiles das notícias sobre a viagem e os discursos da autora. Um grande reencontro.
Dois livros agora lançados para recordar os 25 anos, cumpridos neste março, do desaparecimen- to da ensaísta e poeta: Descobri Que Era Europeia (Ponto de Fuga, 256 pág., €18,80) e o conjunto de inéditos de Entre a Raiz e a Utopia – Escritos sobre António Sérgio e o Cooperativismo (Ponto de Fuga, 96 págs., €9,90)