É preciso não ter medo de perder o pé ao mergulhar neste romance. É que a estrutura narrativa de Morte pela Água pode fazer-nos andar às voltas, braçada após braçada. Ou suscitar a sensação de sermos sugados para um redemoinho, tal como acontece aos personagens. E, no entanto, as premissas estabelecidas pelo autor japonês, Prémio Nobel da Literatura em 1994, são simples: um reconhecido escritor nos seus 70 anos, Kogito Choko, está decidido a iniciar um velho projeto, escrever um romance sobre o dia em que o pai morreu, afogado, enfrentando insensatamente uma inundação.
Essa determinação é desencadeada pelo acesso ao baú de couro vermelho, que conseguiram salvar da tragédia paterna, uma arca ferozmente guardada pela mãe de Choko, com instruções para ser aberta dez anos após a sua morte. Desaparecida a progenitora, Kogito pode, finalmente, abrir esse baú, resolver mistérios, escrever o que será, talvez, o seu último livro relevante – antes de se afundar na irrelevância… É assim que Kogito regressa à Shikoku da sua infância, paisagem rural onde ele e a irmã Asa têm a Casa da Floresta, agora ocupada por um grupo teatral dedicado a montar peças baseadas no trabalho de Kogito. As ondas agitam-se: Kogito sofre de vertigens, discute com o filho Akari, compositor com deficiências cognitivas (outro paralelo biográfico com Ōe), e recebe cartas minuciosas e frias de Asa sobre os ensaios – o formato epistolar cria poças para o leitor.
Há ainda Unaiko, atriz da trupe que traz intensidade às dinâmicas coletivas, e Daio, antigo cúmplice do pai naufragado, que emerge, ameaçando revelações sobre o passado supostamente terrorista do patriarca… Ou seja, a água (e a escrita elegante e imersiva de Kenzaburō Ōe) dilui certezas e referências, nesta história em que se convocam as contradições da sociedade japonesa, as suas castas por género, as suas apneias.
Morte pela Água (Livros do Brasil, 448 págs., €19,90) é o segundo romance traduzido em Portugal, depois de As Regras do Tagame (Clube do Autor, 2012), em que Kenzaburō Ōe utiliza o alter ego Kogito Choko