1. Jesus na Escola, de J.M. Coetze
Muitos lhe louvam o estilo despojado, quase cerebral, com que tem pontuado a obra dos últimos anos. Jesus na Escola é a sequela de A Infância de Jesus, e perfaz um díptico insólito, no qual o nazareno que muitos veneram como filho de Deus nunca chega a ser protagonista. Talvez o seja, mas em sentido figurado, numa reciclagem quase quixotesca na figura de uma criança, David.
O rapaz, agora com seis anos, adaptou-se à estranha família que o adotou – continuamos sem saber como era a vida antes desse episódio –, Simón e Inés, com quem chega de barco a Estrella, cidade alegórica. Ao contrário de muitos dos refugiados que se acercam das costas europeias os três são bem recebidos na terra e, por opção, dedicam-se a trabalhos sazonais, na época das colheitas.
Mas David vai continuar a escapar a qualquer tentativa que fazem de lhe impor uma educação convencional. O diálogo que tem com um professor de matemática, que lhe vai ensinar rudimentos de aritmética, denota a inteligência invulgar do protagonista. Quando o simpático docente, já um pouco exasperado, dispõe duas canetas e dois comprimidos sobre a mesa, separados, para lhe ensinar a noção básica do número, perguntando-lhe o que têm em comum, David responde: “Dois. Dois para as canetas e dois para os comprimidos. Mas não são os mesmos dois”.
A calma aparente da vida, porém, ainda será abalada por um crime, e, ao mesmo tempo, pelo acesso de David a uma escola, mas desta vez uma academia de dança, onde lhe ensinam “a chamar os números do céu”. Mas o leitor não se deve enganar: a linguagem de Coetzee tenta escapar constantemente à alegoria ou à metáfora, e quando cede, é para ridicularizar as figuras de estilo, fazendo-as descer ao nível de cliché. David, esse, promete ficar para a galeria das personagens da literatura mundial.
2. Os 200 Melhores Percursos de Trekking de Portugal, de Miguel Judas
O verso do modernista espanhol António Machado – que tomamos de empréstimo para título deste texto – pode não ser diretamente citado neste livro, que deixa a eventual poesia à descoberta do leitor. Ou seja, se a quer descobrir, calce uns ténis e lance-se à realidade através de uma bela caminhada pelas paisagens contrastantes, ora suaves, ora abruptas, de Portugal.
Por isso, os versos estão lá, a pairar constantemente. O jornalista Miguel Judas fez-se à estrada e visitou trajetos (todos eles sinalizados) a pé, por todos os distritos portugueses, ilhas incluídas, e descreve- -os sem esquecer um único ponto de interesse. Há que não esquecer as imagens que, neste livro, ilustram determinados pontos dos percursos, alguns deles que obrigam a uma paragem com tempo e, até, a suster a respiração. E, ainda, a aprendizagem que se pode fazer do País pelo simples facto de se andar a pé e de se poder ver melhor, e mais demoradamente, o que está à nossa volta. No percurso de Lagoa Comprida (Guarda), por exemplo, o visitante pode “observar vários testemunhos da última glaciação, há cerca de 20 mil anos, seja em campos de blocos erráticos ou nos inúmeros charcos temporários que acumulam a água da chuva e da neve”.
Esta impressionante “viagem no tempo” é apenas uma das muitas curiosidades que a maior parte dos portugueses ignora, por certo, do seu próprio País. Mas há outras. Mesmo que sejamos preguiçosos crónicos, e seja impensável para nós calcorrear assim as nossas estradas, a simples leitura de algumas das descrições pode revelar- -nos surpresas (e dar-nos uma vontade súbita de partir). Sabia que há, até, grandes rotas europeias para caminhantes, e que uma delas vai de Sagres a São Petersburgo? Mas, por agora, Portugal é mais do que suficiente.
3. Jim del Monaco – Ladrões do Tempo, de Louro e Simões
Quem estiver um pouco acima da faixa dos 40 anos, lembra-se por certo de umas tirinhas de BD no extinto Diário Popular (e em formato de álbum) que ajudaram à formação de uma certa identidade dos anos 80. Luís Louro e António José Simões deixaram para a posteridade as aventuras do trapalhão Jim del Monaco, da “bomba sexual” (o cliché não é por acaso, ela é decalcada, justamente, das starlettes que povoam o cinema) Gina e do criado negro, Tião, o único capaz de os safar em situações extremas. Ladrões do Tempo (Asa, 50 págs., €14,95) é o nono livro da série, depois de O Cemitério dos Elefantes ter marcado o regresso da dupla a esta sua personagem, em 2015. Na altura, celebravam-se os 30 anos desta espécie de anti-Indiana Jones da BD. Mas o humor e imaginário, com voltas e reviravoltas no tempo (da época dos dinossauros aos nazis…) em pequenas histórias, está lá todo. Como se o tempo tivesse sido roubado, sim, mas pela dupla de autores.
4. A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa
Era uma vez um jornalista que tenta refazer a sua vida. Sonha com o que lhe vai acontecer no futuro. Conhece um ex-guerrilheiro que não sonha, mas passa a vida a aparecer nos sonhos dos outros, vestido num fato extravagante. E uma artista plástica que fotografa os sonhos, que por sua vez acompanha o protagonista numa experiência que também parece sonhada: ajudar um neurocientista a construir uma máquina que “vê” os nossos sonhos e os reconstitui em filme.
Em A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, José Eduardo Agualusa ensaia uma epopeia a um dos últimos mistérios que ainda desafia a humanidade, a nossa capacidade de sonhar. Com a sua Angola natal como pano de fundo, o autor dá às personagens aquilo que mais parece faltar no país: a capacidade de sonhar. Esta “Sociedade” vive à espera de dias melhores, sobrevive à força da irrealidade e silêncio forçado, em que a espera por maior liberdade parece infinita e será, por certo, insuportável.
Daniel Benchimol, o tal jornalista, refaz-se de um divórcio que é, mais do que tudo, simbólico. Era casado com a filha de um alto dignitário do regime. A filha de ambos, Karinguiri, sai ao pai na dissidência, mas vai à luta. E acaba presa.
Pelo meio, Daniel reflete com Hossi, um amigo inesperado, ex-guerrilheiro da UNITA, sobre a vida, a morte, o tempo e, claro, a estranha capacidade que ambos têm de antever ou intrometer-se nos sonhos. E ainda conhece Moira, a artista moçambicana que usa os sonhos com escape estético. Vamos ao sabor deste tempo subjetivo, para a frente e para trás na realidade e no passado de cada um dos intervenientes, numa fábula inquieta sobre o destino de Angola. Ficamos a saber, porém, que os sonhos podem ser traduzidos e que parecem ser a única língua franca para vencer a morte e, sobretudo, o esquecimento. “O sol acende os vivos e apaga os mortos”, diz-se, a certa altura, em jeito de conclusão.
5. Só Duas Coisas que, Entre Tantas, me Afligiram – Pequenas Memórias, de Alice Vieira
A vida, bem o sabemos desde Xavier de Maistre, pode contar-se numa viagem sem sair de um quarto. Aqui, viajamos pelos livros, mas também pelas memórias do Teatro Capitólio, o Santini de Cascais ou o simbólico Rick’s Bar de Casablanca (o do filme, mas também o de uma ida a Marrocos em agosto, quando “ninguém no seu juízo” lá vai), pontos que marcam uma jornada de vida. Neste caso, a de Alice Vieira, que conhecemos melhor da literatura juvenil e que agora recupera (pequenas) memórias, louvando a literatura como um percurso cheio de marcos no caminho, de Astérix à Alice de Carroll ou até à comparação entre as cartas e os atuais SMS. Nada escapa ao mundo das letras e Só Duas Coisas que, Entre Tantas, me Afligiram (Casa das Letras, 248 págs., €15,90) também não.
6. José Matias e Bartleby, de Eça de Queirós e Herman Melville
E assim continua a original coleção da editora Guerra & Paz Livros Amarelos, que “dá a ler o diálogo entre ensaios, contos, poemas, novelas.” Desta vez cruzam-se debaixo da mesma capa amarela dois ilustres homens das letras do século XIX: o norte-americano Herman Melville (1819-1891) e o português Eça de Queirós (1845-1900). O que os aproxima aqui? A criação de duas personagens com uma irresistível pulsão para o não fazer que as leva, de renúncia em renúncia, até a um trágico desfecho. Mas Bartleby e José Matias são casos bem diferentes, e nem é certo que, tendo existido, tivessem conseguido conviver e entender-se.
Não deixa de ser irónico que Bartleby tenha alimentado tantos textos e reflexões de grandes pensadores até aos dias de hoje. Este herói da inação (ou, melhor, exemplo radical de anti-herói), que a tudo responde com a frase “preferia não o fazer” sem nunca abandonar uma profunda indiferença e impassibilidade perante o que o rodeia, foi intrigando e encantando geração após geração e chega aos labirintos do século XXI com perfeita atualidade, obrigando-nos a questionar as bases de uma modernidade que ainda hoje ilumina os nossos dias. O seu lugar era Wall Street e quem nos conta a sua história é um advogado “falho de ambição” que um dia decidiu dar emprego a Bartleby.
Já José Matias é uma história de Lisboa contada por um professor de Filosofia que recorda a personagem no momento do seu funeral. Também há, aqui, renúncia, mas no universo da paixão e sentimentos românticos. A história de Matias, apaixonado pela bela Elisa ao ponto de sempre a evitar, mesmo quando o amor é correspondido e tem tudo para se consumar, é a de um extremo amor platónico, diríamos mesmo patológico, que tem tudo para fascinar os psicólogos contemporâneos.
Apetece chamar pelos dois, Bartleby e José Matias, para a realidade, para os nossos dias, para a vida. Ou simplesmente contemplá-los e refletir. Este livro faz ambas as coisas.
7. Poemas Escolhidos, de Yorgos Seferis
Nobel da Literatura em 1963, com uma obra que vai beber à tradição helénica clássica, Yorgos Seferis (1900-1971) mantém uma linha da lírica grega que já vinha de outro ilustre, Kavafis. Um e outro afirmaram-se como estandartes do seu país e ambos são filhos da diáspora de uma Grécia num permanente vaivém entre autodeterminação e subordinação. Seferis nasceu na atual Esmirna (Turquia), Kavafis nascera no Egito. Os versos dos dois foram usados em manifestações políticas, fosse contra a ditadura militar grega, fosse contra a mais recente intervenção da troika na Grécia. Poemas Escolhidos (Relógio d’Água, 172 págs., €16) percorre a carreira do poeta, com tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Em Dias de Junho de 41, escreve Seferis: “Quem quer hoje em dia banhar-se nas águas de Proteu?”. Mergulhemos.
Feira do Livro de Lisboa > Parque Eduardo VII, Lisboa > até 18 jun