O trajeto, que hoje se faz em linha reta, sem barreiras, parecia, há pouco tempo, um salto quântico num filme de ficção científica. Ia-se, literalmente, para outro mundo em poucos metros. Cruzava-se a fronteira do mundo ocidental com o “Leste europeu”, território de experiências de “socialismo real”. As personagens desta história verdadeira são três ocidentais vindos de três cantos do mundo muito díspares, mas assolados pela curiosidade: como é mesmo o mundo para lá da “cortina de ferro”?
Gabriel García Márquez empreendeu esta viagem de carro entre as então duas Alemanhas na companhia de dois amigos, uma francesa e um italiano. O primeiro mito a cair foi o material da tal cortina que separava os dois mundos, segundo a expressão de Churchill tão feliz quanto apartada da realidade. Assim a viu o Nobel colombiano, na longa viagem que empreendeu nos anos 50: “A cortina de ferro não é uma cortina nem é de ferro. É uma barreira de pau pintada de vermelho e branco como os anúncios das barbearias”.
Este foi apenas um dos mitos sobre os países socialistas a cair. Mas é preciso fazer a advertência: Gabo viajou poucos anos depois da Segunda Guerra, quando ainda não havia um muro real a dividir Berlim e as fronteiras entre o capitalismo e o estalinismo na Europa eram um tímido arame farpado controlado por guardas imberbes e impreparados. Visitou a ex-RDA, a antiga Checoslováquia, a Polónia, a Hungria, logo após a violenta repressão da revolta de 1956, e o centro do “império”, a extinta União Soviética. De traço apurado e com a alma de verdadeiro repórter que sempre o acompanhou conseguiu por diversas vezes quebrar a verdadeira “cortina” centrando-se nas experiências humanas destes regimes. E o que encontrou desiludiu-o: “Julgo que no fundo de tudo há uma perda absoluta da sensibilidade humana. A preocupação com as massas não deixa ver o indivíduo”, escreve, a propósito da vida das pessoas na RDA. Na URSS, confirmou a generosidade “desesperada” das pessoas, que tudo ofereciam e tudo queriam saber sobre o mundo de que estavam separadas há décadas. O isolamento perpétuo e a pobreza generalizada, conclui o autor por diversas vezes, eram provas de que a revolução tinha falhado a promover o que prometia na sua essência: acabar com as desigualdades.
Em Viagem pela Europa de Leste (D. Quixote, 192 págs., €14,90) sublinha o percurso de García Márquez pelo leste europeu do pós-guerra, revelando a desilusão do autor com a natureza estática e repressora dos governos-satélite da URSS.