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O britânico McEwan faz de um nascituro o narrador deste livro
O primeiro parágrafo de Numa Casca de Noz dado à luz anuncia: “E para aqui estou eu, de pernas para o ar dentro de uma mulher.” O resvalamento licencioso é logo desmontado: “Com os braços pacientemente cruzados, à espera, à espera e a perguntar-me dentro de quem estou, para que estou aqui. Fecho os olhos com nostalgia quando me recordo de como em tempos vogava dentro do meu translúcido saco físico, a flutuar como num sonho (…), colidindo docemente com os limites transparentes da minha clausura, a membrana reveladora que, embora as abafasse, vibrava com as confidências dos conspiradores envolvidos num vil empreendimento.” O britânico McEwan faz de um nascituro o narrador de uma peça velha: este “espírito livre, apesar do espaço exíguo” escuta “conversas de travesseiro de intenções mortíferas”.
São os planos da mãe Trudy e do cunhado Claude, seu amante de “língua inchada de lugares comuns”, que tem também os olhos postos na valiosa propriedade onde ela vive com o marido John, poeta e apreciador de smoothies. Haverá conversa de venenos nestes sumos… O embrião atormenta-se, um espião na casa do amor, flagelado de perto pelo apetite sexual do tio. Expia a sua impotência, refletindo sobre o mundo que o espera: “A velha Europa, esclerótica, relativamente generosa, atormentada pelos seus fantasmas, vulnerável aos opressores, insegura, destino de eleição de milhões de infelizes.” Cita Barthes, vibra com o Ulisses, de James Joyce, sabe o que é um podcast, aprecia um copo de vinho “partilhado” com a mãe. “Como é possível eu, que nem sequer sou jovem, que nem sequer nasci ontem, saber tanto, ou saber o suficiente para errar tanto?”, espanta-se o futuro bebé, e espantamo-nos nós. A explicação está no gosto de Trudy pelas emissões de rádio sobre auto aperfeiçoamento. Um feto filósofo testaria a descrença de qualquer um (e faria as delícias de fracos comediantes), mas McEwan ampara sempre este divertissement macabro com uma fina ironia.
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Numa Casca de Noz (Gradiva, 184 págs., €14) parte de Hamlet, peça shakespeariana sobre um filho que procura vingar a morte do pai, envenenado pelo irmão Cláudio, e origem da epígrafe que batiza o romance: “Oh, Deus, eu podia estar fechado numa casca de noz e sentir- -me rei de um espaço infinito, não fora ter pesadelos”.