A noite de invernia que nos recebeu na véspera da partida, com vento e chuva, augurava um início de odisseia agitado para a manhã seguinte. A ansiedade, todavia, depressa foi apaziguada por uma mesa farta (e uma animada conversa) com que fomos recebidos na Casa da Lua, um dos mais recentes bike hotels da Rota Vicentina, situado na pequena e isolada aldeia de Vale Santiago, bem no interior do concelho de Odemira, onde Cristina e Pedro assentaram arraiais, “fugidos da cidade”.
Além do alojamento, servem refeições, organizam retiros e oferecem diversas atividades ligadas aos saberes e tradições da região, para as quais contam com a colaboração dos poucos habitantes que ainda vivem na aldeia.
Se o objetivo inicial da Rota Vicentina era dar a descobrir os locais menos conhecidos deste imenso e belo território, que se estende desde Santiago do Cacém até Lagos, a Casa da Lua e Vale de Santiago são o exemplo de como turismo e sustentabilidade não têm de ser antónimos. Mas adiante, pois a noite já vai longa e amanhã, bem cedo, é tempo de nos fazermos à estrada.
Ali bem perto, a pouco mais de dez quilómetros, fica o ponto de partida da Grande Travessia de Bicicleta da Rota Vicentina, que, depois de ter sido considerada uma das melhores grandes rotas pedestres da Europa, agora também aposta nas duas rodas.
Além desta travessia, com cerca de 145 quilómetros, que liga a estação de Amoreiras Gare à aldeia de Santa Clara-a-Velha, conta ainda com 38 percursos de BTT, de diversos níveis de dificuldade, e ainda com um percurso de touring bike, entre Lisboa e Faro, cujo traçado em GPS pode ser descarregado no site da Rota Vicentina.
Concentremo-nos, por ora, nestes primeiros quilómetros da Grande Travessia, cuja primeira etapa é bastante fácil, percorrendo algumas das mais remotas zonas do concelho de Odemira, por entre caminhos e grandes estradas rurais e florestais, no meio do montado e de pastagens quase sem qualquer presença humana. Tal como Cristina previra na véspera, o tempo levantou, mantendo-se apenas algumas nuvens, que de vez em quando até deixam o sol espreitar e inundar de luz esta bela paisagem.
A partir da vila de Colos e após a pitoresca estação da Funcheira, o caminho torna-se mais variado, com mais descidas e subidas, que, embora suaves, já nos obrigam a dar um pouco mais ao pedal.
Seguimos ao longo da ribeira do Seissal até ao cruzamento de caminhos, que conduzem à ermida de Nossa Senhora das Neves, local de culto do concelho de Odemira, construído no século XVI, no topo do Cerro do Queimado, no mesmo local onde antes existiu uma pequena fortificação islâmica. Impor-se-ia um desvio até àquele miradouro natural, a quase 300 metros de altitude, com vista panorâmica sobre o montado, mas a rampa que seria preciso vencer manteve-nos na rota, em direção a São Luís.
A única paragem seria um pouco mais à frente, para almoçar na Figueirinha, uma unidade de ecoturismo situada no meio de nenhures, ainda que a apenas 25 quilómetros das movimentadas praias de Vila Nova de Milfontes, num bucólico vale povoado por sobreiros e oliveiras.
À nossa espera estava um saboroso e nutritivo almoço, confecionado, em grande parte, com o que esta terra dá, na horta e nos pomares de produção biológica da herdade reconvertida para fins turísticos, onde a sustentabilidade não é palavra vã – a energia é solar, e a piscina natural e todos os resíduos (incluindo os das casas de banho secas) são transformados em matéria orgânica, utilizável na horta através de compostagem.
Sim, apetecia-nos ficar por mais tempo, mas ainda há muito que pedalar pelos mais técnicos trilhos da serra do Cercal, para pernoitarmos na Herdade da Matinha, um dos projetos de ecoturismo pioneiros na região, iniciado em meados dos anos 90 e hoje uma referência, até mesmo internacionalmente, na área do turismo sustentável.
Horizontes sobre o oceano
Na manhã seguinte, já com o sol a brilhar e um percurso quase sempre a descer, não demorou muito até chegarmos a São Luís, onde nos desviamos da Grande Travessia para percorrermos, sempre em direção a sul, parte do percurso de touring bike, num troço quase sempre junto à costa.
Um dos primeiros momentos “uau” é a travessia da ponte sobre o rio Mira, junto a Vila Nova de Milfontes, onde nos cruzamos com um casal suíço de ciclistas, que, com ele, transportava um cão num atrelado, em que o bicho seguia estrada afora com um ar refastelado. Sendo um percurso de touring bike, e portanto acessível a todo o tipo de bicicletas, o caminho varia entre estradas asfaltadas, caminhos em terra batida e ciclovias, evitando, sempre que possível, as vias com trânsito automóvel.
Antes da chegada ao cabo Sardão, há que retemperar forças, com uma sopa e uma bifana, na Adélia, no Cavaleiro, que, a ver pelos caminhantes e ciclistas que por ali fazem paragem, será um dos cafés mais famosos da Rota Vicentina. Já junto ao farol, e depois de dizermos olá às cegonhas (as únicas na Europa a nidificar junto ao mar), é tempo de seguir, agora por um trilho junto à costa, em direção à Zambujeira do Mar e daí até São Miguel, para nova pernoita, nos bungalows do renovado Camping de São Miguel.
Miradouros nas falésias
Um pouco mais abaixo, a ponte sobre a ribeira de Seixe marca a entrada no Algarve e num dos troços mais bonitos deste percurso, o que une São Miguel à Carrapateira, feito quase sempre junto ao mar, por grandes estradas de largos horizontes abertos para o oceano.
A partir daí, o caminho para se chegar à Praia do Amado, já no concelho de Vila do Bispo, é pela estrada de terra, paralela ao mar, que percorre o Pontal da Carrapateira, por onde seguimos, após uma retemperadora noite de sono no turismo rural Casa Fajara.
Durante o percurso, impõem-se algumas paragens para se apreciar a paisagem – existem vários miradouros em madeira nas falésias. Entre os diversos locais de interesse, destacam-se o pesqueiro da Zimbreirinha, com as toscas casas de cana, onde os pescadores guardavam os instrumentos das suas artes, ou ainda as ruínas de um povoado islâmico do século XII, na Ponta do Castelo, de onde se avista a Praia do Amado.
Apesar do constante sobe-e-desce, daqui até à Vila do Bispo, como se costuma dizer, é só um “tirinho”, mas a sucessão de miradouros naturais, como o da Torre de Aspa ou o do Castelejo, acaba por diminuir um pouco a marcha, porque é impossível resistir a parar em lugares assim.
A chegada a Sagres, em plena hora de almoço, acabou por revelar-se certeira, como se comprovou pelo tempo de refeição no restaurante Sereia, no porto de pesca da Baleeira.
O resto da tarde seria passado em ritmo lento, já com o fito na Salema, a meta final desta longa jornada em duas rodas, iniciada no interior do Baixo Alentejo e terminada aqui, quatro dias e mais de 200 quilómetros depois, numa das mais bonitas praias da costa sul do Algarve.
GUIA DE VIAGEM
VER
Oficina do Barro Monte da Estrada, Zambujeira do Mar > T. 91 678 9143
Vicentino Wines – Adega da Costa Atlântica Herdade do Brejo Redondo, Brejão > T. 282 940 000
COMER
Snack-Bar Adélia R. do Comércio, 1, Cavaleiro > T. 283 961 251
Cervejaria Mar R. da Escola 13, Aljezur > T. 927 935 418
Restaurante Sereia Porto da Baleeira, Sagres > T. 282 109 682
DORMIR
Casa da Lua Lugar das Parreiras, Vale de Santiago > T. 96 204 6407 > a partir de €60
Figueirinha Ecoturismo Herdade da Figueirinha dos Condados, Relíquias > T. 283 623 306 > a partir de €160 (2 noites)
Herdade da Matinha Cercal do Alentejo > T. 96 884 8579 > a partir de €295
Camping São Miguel EN 120, São Miguel > T. 92 668 0611 > a partir de €70 (bungalow)
Casa Fajara Vale de Carrapateira, Bordeira > T. 282 973 134 > a partir de €120
Salema Eco Camp Praia da Salema, Budens > T. 282 695 201 > a partir de €60 (estúdios)