Paulo Tuna precisava que o dia tivesse mais tempo. Está na oficina há 12 horas e quando sai ainda deixa coisas por fazer. O topo da carreira de cuteleiro é fazer o próprio aço e Paulo Tuna, 44 anos, para lá caminha: “Tenho o sonho de fundir ferro e carbono a partir de minério português, para poder dizer que a faca é 100% nacional.” Desengane-se quem pensa que lhe leva o desenho para ser replicado. “Recuso-me a copiar o modelo que pode ser esteticamente bonito, mas em que não acredito”, justifica. As mais de 500 facas que já fez – de pão, para sushi, de mesa, cutelos e até espadas – dão-lhe autoridade para falar do assunto.
Paulo Tuna faz facas únicas a custarem algumas centenas de euros. Não há duas peças iguais, a martelada na lâmina é como se fosse a sua impressão digital. No entanto, o cuteleiro não põe de parte a ideia de criar um modelo de uma faca de mesa ou de uma navalha e mandar produzir em série numa fábrica. Só assim lhe sobrará tempo para fazer facas de chefe e ainda imaginar uma nova todos os dias.
Transmontano de Vila Real, aos 8 anos o avô deu-lhe o seu primeiro canivete; aos 14, um machado. Com eles, fazia os seus brinquedos em madeira. Depois de ter completado o curso de Artes, em Vila Real, em 1995 entrou na Escola Superior de Artes e Design, nas Caldas da Rainha, para Pintura e Escultura. Seguiu-se uma dúzia de anos como funcionário público, a trabalhar em escultura como técnico superior, antes de ser professor nas oficinas da mesma escola.
Minúcia e materiais nobres
Fazer uma faca é, para Paulo Tuna, um processo de modelação, em tudo semelhante ao manusear blocos de pedra na escultura, só mudam as dimensões. As paredes da sua oficina com pé-direito alto funcionam como uma tela em branco na qual gosta de desenhar a carvão os primeiros esboços. O torno, a bigorna, a serra e o martelo são peças portuguesas encontradas em feiras e velharias, onde também costuma comprar facas antigas a juntar à coleção de 150 canivetes. O seu trabalho e o de Carlos Norte é valorizado pela minúcia da mão de obra, pelos materiais nobres, mas também pelos cunhos do artista e da região. Juntos, em 2012, deram conta da encomenda do chefe Leonardo Pereira: 100 facas para o Noma, em Copenhaga, na altura “o melhor restaurante do mundo”. Outros chefes seguiram o exemplo. Para o restaurante Loco, em Lisboa, Alexandre Silva encomendou dez facas para pratos de carne todas diferentes. Também Vasco Coelho Santos, do Euskalduna Studio, no Porto, e João Rodrigues do Feitoria, em Lisboa, quiseram facas feitas à medida. Mas, apesar da visibilidade ganha, não são estes os seus maiores clientes.
Uma região com tradição
Nas Caldas da Rainha, entre Santa Catarina, Relvas e Benedita, já existiram perto de 60 cuteleiros, agora não passam a meia dúzia. Há uma década, Carlos Norte, 50 anos, e outros artesãos do aço criaram o coletivo Lombo do Ferreiro, numa alusão ao sítio arqueológico no concelho de Alcobaça, onde foram identificados numerosos vestígios de atividade metalúrgica. Na internet, abriu a Loja das Facas, para promover os canivetes tradicionais portugueses, alargando depois o catálogo a outras marcas.
É na oficina do avô que Carlos dá forma às chapas de aço. Estudou Engenharia Mecânica, trabalhou em eletrónica e na construção de máquinas. A visitar feiras e capitais de cutelaria de luxo, o verdadeiro engenhocas deixou-se fascinar pelo aço: “Na cutelaria de autor, não há uma peça igual à outra.” Quando se está a começar é o perfecionismo japonês que serve de inspiração. A aprendizagem do tratamento térmico do aço já a tinha e aprofundou-a na sua passagem pelas fábricas da região. No programa televisivo Forjado no Fogo, no Canal História, Carlos apareceu com a Falcata Lusitana, uma espada de combate curto, a preferida de Viriato. Apesar do mediatismo, é no canivete que quer continuar a apostar, até porque ainda conta com a ajuda do pai, e já são poucos os que têm paciência para os fazer. Um objeto complexo com vários mecanismos incorporados, daí a dificuldade em automatizar máquinas e afinações que consigam produzir canivetes em larga escala.
Na oficina, cada bancada tem a sua função e cada caixa guarda algumas relíquias. Há materiais muito diferentes: cornos de veado, de antílope, de búfalo torneado e de cabra-montês, raiz de oliveira e pequenos pedaços de buxo, ébano e nogueira, partes de dente de mamute (inteiro pode custar quatro mil euros), madrepérola e casca de tartaruga. Porque quanto mais estranho, melhor.
A ideia de que as facas de chefe industrializadas são baratas e de qualidade inferior às concebidas pelos ferreiros especializados é falsa e um puro preconceito. Na verdade, foram os grandes mestres cuteleiros que fundaram as fábricas da região Oeste onde ainda hoje perdura o conhecimento. Uma enternecedora história de amor está na base da Ivo Cutelarias (1954), depois de João Ivo Peralta passar vários anos a ir de Santa Catarina até ao Algarve, de bicicleta, vender navalhas ao pai de Maria das Dores Cabrita. Mais de 65 anos passados, são agora os três netos do fundador que fazem as honras da casa. Gonçalo, 30 anos, como diretor comercial, Rafael, 27 anos, responsável financeiro, e Ivo, 24 anos, chefe de produção. O seu pai António Ivo Peralta, 59 anos, faz questão de tratar de determinados assuntos e, não fosse a pandemia, teríamos encontrado Maria das Dores Cabrita, 85 anos, por entre aço, plástico e madeira – as principais matérias-primas deste ofício.
Por estes dias, os três irmãos estão a desenvolver facas de estilo japonês, apetecíveis para os profissionais. A fórmula certa passa por encontrar o peso equilibrado entre o cabo e a lâmina. São milhares de moldes de facas, impossíveis de contabilizar. A grande diferença do portefólio da Ivo Cutelarias está nas facas forjadas, feitas de um pedaço único de aço desde a lâmina até ao cabo, ao contrário das facas estampadas, mais simples, com cabo de plástico (ou madeira) injetado no aço. Esta fábrica guarda a única forjaria clássica de Portugal, um processo antigo e muito vantajoso na redução de desperdício. “Não dependemos de ninguém”, sublinha Gonçalo. Aliás, fazem facas forjadas para cutelarias de países como Itália, França ou Alemanha. Um verdadeiro embaixador português tal como a vizinha Icel, na Benedita, a produzirem sobretudo para hotelaria, restauração e empresas de processamento como matadouros, talhos e peixarias.
Fundada há 75 anos pelas famílias Jorge e Serralheiros, a Icel vai na terceira geração, com Nuno Radamanto, diretor-geral, e Carolina Jorge, no marketing. Em 2004, tornou-se a primeira empresa metalúrgica do mundo com certificação ambiental e, desde então, a água e o ar utilizados, em grandes quantidades, no processo de fabricação merecem uma atenção especial. Com uma estação de tratamento própria, a água é devolvida limpa à rede pública e o ar regressa à atmosfera ainda mais puro.
Logo à entrada da fábrica, uma prensa de corte mantém-se ali quase em exclusivo para, todos os anos, produzir 400 mil pequeninas facas de mesa com cabo de madeira prensada para os gregos. Em contraponto, um cutelo enorme é fabricado para os holandeses. Chamam-lhe “abre-cabeças”, pois nos matadouros dos Países Baixos não gostam de usar serras elétricas. Célebres pelos canivetes suíços, a Victorinox gosta de produzir aos milhões, por isso, todas as encomendas de dimensão mais pequena são feitas na Icel. A existência de uma serração na fábrica é outra garantia de qualidade. Apesar de a madeira ser cada vez menos usada nas cozinhas profissionais, em nossas casas e nos restaurantes houve um aumento do consumo, até de madeiras novas como a oliveira. E o departamento só para afiar as facas à mão garante o dobro da qualidade em relação às máquinas.
De Palaçoulo para o mundo
No Planalto Mirandês, a 20 quilómetros de Miranda do Douro, a pequena aldeia de Palaçoulo, com pouco mais de 550 habitantes, anda há muito nas bocas (e nas mãos) do mundo. Dali saem as navalhas e as facas artesanais mais antigas de Portugal, a partir de um negócio que foi fundamental para travar a imigração nesta aldeia transmontana. Como as da Cutelaria Martins, criada em 1954 pelo ferrador José Maria Martins que, além das ferraduras para animais, se dedicou ao fabrico manual de navalhas para uso dos agricultores, “como a pé de cabra, com o cabo redondo para não lhes furar os bolsos”, conta Alberto Martins, 49 anos, o mais novo dos quatro filhos que tomam conta do negócio.
O trabalho feito à mão continua a ser fundamental no fabrico de navalhas e canivetes, de facas de cozinha (usadas em steakhouses como o Terminal 4450, em Leça da Palmeira) ou de caça. “Uma navalha é manipulada umas 80 vezes até ficar pronta”, explica Alberto Martins, enquanto nos guia pelas diferentes etapas do processo de fabrico: das placas de aço cortadas em retângulos às lâminas revestidas, tratadas e polidas vezes sem conta, à madeira (freixo e azinheira, sobretudo, mas também oliveira, pau-santo da Índia, ébano e bubinga) cortada, lixada e arredondada à medida de cada cabo.
“Associar a História ao produto” é uma preocupação da cutelaria. “Precisamos de saber de onde vimos, para onde vamos e queremos caminhar”, diz o responsável pela empresa, que exporta um quarto da produção (por ano, fazem meio milhão de peças) para o mercado da saudade. O Kit Merendeiro é um dos exemplos: uma pequena tábua de madeira com uma faca de corte para queijos e enchidos, a pensar nas populações do Interior. “Só existe porque estamos em Trás-os-Montes”, atira Alberto. Mas há outros, como a coleção de navalhas inspirada no rio Douro (das aves de rapina ao casario da Foz do Porto), as temáticas (de apicultor, pesca ou ciclismo) ou da Amizade, surgida durante a pandemia, em edição numerada, pensada “como forma de expressão e comemoração da afetividade”. No fundo, tornam-se peças de família que passam de geração em geração. *Com Florbela Alves
MORADAS
Cutelaria Martins > R. da Indústria, 5, Palaçoulo, Miranda do Douro > T. 273 459 128 > cutelariamartins.com
ICEL – Indústria de Cutelarias da Estremadura > Av. Padre Inácio Antunes, 45, Benedita > T. 262 925 030 > icel.pt
Ivo Cutelarias > EN360, 20, Santa Catarina > T. 262 925 340 > ivocutelarias.com
Lombo do Ferreiro > Loja das Facas > R. 10 de Julho, 10, Relvas, Santa Catarina > T. 262 098 585 > seg-sex 9h-19h (visitas com marcação) > lombodoferreiro.pt > lojadasfacas.pt
Paulo Tuna – The Bladesmith > R. Adelino Soares de Oliveira, 19, Caldas da Rainha > T. 96 203 7446 > www.thebladesmith.pt