Está tudo impecavelmente organizado nesta cozinha de chefe. Ingredientes identificados em caixas herméticas, frescos arrumados ao milímetro no frio, emulsões várias prontas a usar, facas e demais utensílios divididos por gavetas, taças de inox para um lado, louças e pratos para outro, tudo à mão de semear. E da mesma forma que o ambiente se agita no momento de preparar um prato, tudo volta ao seu devido lugar como se nada se tivesse passado. Cada um sabe a sua função, ninguém se atrapalha. No centro deste palco – que neste dia a cheirar a Natal, é a cozinha do restaurante Less, aberto há um ano dentro da Embaixada, no Príncipe Real, em Lisboa –, está o maestro, apregoe-se já o seu gosto e talento para a música. Miguel Castro e Silva, 55 anos, primeira geração de cozinheiros que, com Vítor Sobral e Joaquim Figueiredo, atribuam-se os devidos créditos, pôs a gastronomia portuguesa a falar mais alto e abriu caminho às gerações seguintes, alguns a brilhar agora no firmamento do Guia Michelin.
Na bancada, a mise-en-place está no ponto. Cebola descascada, malagueta, coentros, tomate escaldado e as postas de bacalhau, cura de quatro meses, demolhadas, em várias águas, por 48 horas no frigorífico. Quando telefonámos a Miguel Castro e Silva, a convidá-lo para fazer uma ementa de Natal, receitas incluídas, este foi o único ingrediente que sabia que não podia faltar, ó inevitabilidade à mesa portuguesa. Mas de que forma? Mais ou menos tradicional? É que se há assunto que tem “pano para mangas”, é este do bacalhau, diz o chefe. E também regras, como a forma correta de o cozer, que não se cansa de repetir: panela com água a ferver, bacalhau lá para dentro, deixar levantar fervura e desligar o lume. Quinze minutos depois, está pronto a servir.
“As pessoas tendem a juntá-lo com as couves, nada mais errado porque cada ingrediente tem o seu tempo de cozedura”, explica, enquanto vai picando finamente a cebola. O truque? Corta-se ao meio, tira-se o olho e fazem-se vários cortes na vertical, deixando inteira a parte de trás para que não desmanche. Ponta dos dedos para dentro, é só voltar a cortar muito miudinho que sai na perfeição. Lição aprendida, chefe. Castro e Silva decidiu-se por um tártaro de bacalhau, a servir de entrada, e depois de preparar todos os ingredientes, espreita o tacho posto em lume brando vai para quase uma hora. As pernas de pato, em molho de vinhos com azeitonas e canela, estão quase prontas. “É uma versão de uma receita tradicional do Norte de Portugal, da região de Trás-os-Montes, pouco conhecida. Já a faço há muitos anos”.
À mesa nos entendemos
Se há altura do ano em que Miguel Castro e Silva não cozinha – e são muito poucas as vezes em que tal acontece – é precisamente no Natal, quando se refugia na aldeia da mulher, perto do Sabugal, onde tudo fica por conta da sogra e das tias da família de Graça. E se calha a ir ao Porto, cidade onde nasceu e vivem os seus pais, é para comer o ganso assado, os biscoitos de gengibre e o bolo de mel bem ao jeito da tradição alemã herdada da mãe, e ainda o bolo inglês feito a preceito, segundo a receita da avó nascida no País de Gales.
Miguel Castro e Silva diz que começou tarde nesta profissão. Aos 31 anos, para ser preciso, depois de ter feito do mundo a sua casa e numa altura em que “ser cozinheiro era chocante, sobretudo numa família de média burguesia do Porto”. A música sempre o acompanhou – primeiro ao piano, depois no baixo e até como técnico de som, ficando para a posteridade a participação no primeiro disco de António Variações. E ainda tentou a formação em Biologia, na Universidade de Kiel, na Alemanha, por onde andou dois anos. O percurso profissional passou pela indústria têxtil, numa empresa com sede na Suíça, há de contar-nos, já sentados à mesa, acompanhados por um tinto e um branco Ribeiro Santo, da região do Dão, feito em parceria com o enólogo Carlos Lucas. “A minha cultura não era a cozinha portuguesa”, conta. E no entanto foi por ela que se interessou. “Estava mal tratada e reduzia-se a meia dúzia de pratos. Bacalhau (cozido ou à Brás), feijoada, filetes (de pescada ou de polvo, essa grande ‘inovação’, pois então), o cozido, o bife”.
O que para si é diferenciador na nossa cozinha é “o uso das ervas aromáticas” – de que foi pioneiro em Portugal, “chegaram a dizer que o que fazia era cozinha francesa” – e as diferentes utilizações dos milhos, do pão, do grão-de-bico, da couve portuguesa ou dos cogumelos selvagens, “que hoje custam mais do que um quilo de carne”. Destes, e de outros produtos, nos fala o livro Na Cozinha de Miguel Castro e Silva, acabado de editar, a reunir 48 ingredientes, muitos considerados menos nobres, “mas tão interessantes quanto o robalo ou o porco alentejano”. Perdeu-se um músico e um cientista, ganhou-se a dobrar na gastronomia.
Fazer sonhos em Nova Iorque
Não há lugar a grandes improvisos no que à doçaria diz respeito. É tudo uma questão de química e os sonhos que fez para nós, envoltos em açúcar e canela sem pingo de gordura, seguiram à risca os pesos e todos os passos certinhos. “Estão mesmo bons”, nota Miguel Castro e Silva, que agora anda mais atento à saúde. Deixou de fumar, tem mais cuidado consigo. E está cheio de ideias e projetos, preparando-se para abrir, no ano que vem, mais um restaurante em Lisboa (além do Less, Miguel tem o deCastro Flores, na Praça das Flores, e um balcão no Mercado da Ribeira). Adianta que não fica muito longe de onde estamos, o Príncipe Real.
Por ora, está de partida para Hong Kong, onde por estes dias está a cozinhar. Foi convidado para fazer o jantar de gala dos 150 anos do Clube Lusitano, e também vários pratos que vão integrar a ementa do restaurante daquela que é a casa dos lusodescendentes na antiga colónia britânica. Dali, parte depois para Nova Iorque, onde vai passar o Natal com a filha Rita. “Ela já convidou uma amiga, sul-americana, para se juntar a nós e estão todas contentes porque vou ser eu a cozinhar. Vou fazer sonhos e fazer sonhar. Assim espero.” E assim será. Feliz Natal.
Seguem, abaixo, as receitas do Tártaro de bacalhau, Pato com azeitonas e canela e dos Sonhos
Tártaro de bacalhau
Ingredientes
Para 4 pessoas
• 600 g bacalhau demolhado
• 150 g tomate maduro, escaldado para tirar a pele
• 75 ml sumo de lima
• 75 g azeite
• 1 cebola roxa pequena
• 1 malagueta vermelha
• Coentros
• Rebentos de rabanete
Preparação
Retirar as espinhas e a pele ao bacalhau e cortar em cubos. Picar finamente a cebola e os coentros. Retirar as sementes da malagueta, cortar em tiras pequenas e picar. Cortar o tomate em quatro, retirar as sementes e cortar em cubos. Numa taça, envolver o bacalhau com os restantes ingredientes e temperar com o sumo de lima e azeite. No prato, enformar em aro médio e decorar com os rebentos.
Pato com azeitonas e canela
Ingredientes
Para 4 pessoas
• 4 pernas de pato grandes
• 1 cebola grande
• 100 g bacon
• 100 ml vinho tinto
• 100 ml vinho do Porto Ruby
• 4 paus de canela
• Alecrim
• 24 azeitonas verdes
Preparação
Corar as pernas, temperadas de sal, em lume brando, para derreter alguma gordura. Reservar. No mesmo tacho colocar a cebola e o bacon picados. Deixar suar. Adicionar os vinhos e deixar levantar fervura. Baixar o lume, juntar as pernas de pato, a canela e um pouco de alecrim. Tapar e deixar cozinhar por uma hora em lume brando. No fim, adicionar as azeitonas.
Sugestão de acompanhamento: chips de batata. A melhor variedade de batata para fritar é a agria, cortada com pele para dar mais sabor, e a vitelotte, de cor roxa.
Sonhos
Ingredientes
Rende 80 unidades
• 250 ml caldo de abóbora
• 250 ml leite
• 250 g manteiga sem sal
• 350 g farinha sem fermento
• 10 g fermento
• 10 ovos
• Um pouco de sal
Para o caldo de abóbora
• 250 ml água
• 50 g abóbora limpa
• Casca de limão e laranja
• 1 pau de canela
Preparação
Caldo de abóbora: Cozer a abóbora na água com os restantes ingredientes, retirar as cascas e o pau de canela e triturar.
Sonhos: Levar o caldo de abóbora a ferver com o leite e a manteiga. Deitar de uma só vez a farinha peneirada, já com o sal e fermento, e envolver. Apagar o lume e trabalhar com a colher de pau até formar uma bola. Colocar a massa na batedeira e bater um pouco até que esteja morna. Incorporar os ovos, um a um. Com a ajuda de duas colheres, moldar a massa em pequenas bolas e fritar na frigideira a 1500 C durante uns sete minutos. Colocar num tabuleiro sobre papel absorvente. Servir polvilhados com açúcar e canela.
Pode guardar a massa no frigorífico, máximo três dias, e ir fritando a quantidade desejada.