- Clique conhecer a receita que o chefe António Vieira, do restaurante Shis, no Porto, criou com as sardinhas da Pinhais: DUO DE SARDINHAS COM CHUTNEY DE PIMENTO VERDE E ALPERCE
Não há uma palavra, mas há uma pergunta mágica, que abre portas a memórias antigas a uma cidade polo da indústria conserveira nacional; ao cheiro a peixe que invadia as ruas e aos gatos que o perseguiam; aos pescadores que vinham esperar as namoradas na hora da saída; aos tropas que acertavam o relógio para passar à porta das conserveiras em hora de bulício e piscar o olho às meninas. “Há quantos anos aqui trabalham?” é a pergunta-isco, lançada às mulheres de avental igual que se reúnem à volta de uma mesa de corte. As mesas de mármore estão ali há 92 anos, a idade da conserveira Pinhais, uma das quatro que sobreviveram, de entre mais de meia centena que chegou a haver em Matosinhos, quando a parte industrial ainda não tinha cedido o lugar a prédios e condomínios de luxo e as conservas davam emprego a mais de 6 mil pessoas. As outras resistentes são a Portugal Norte, a Ramirez e a La Gôndola. Mas a Pinhais é a única a manter o fabrico artesanal. Entre as colaboradoras, é fácil encontrar quem conte mais de 40 anos de casa. Laurinda Silva tem 43, chegou à Pinhais com 17 anos mas começou com 14 “nas conservas”. “Estive na Boanova que já fechou”, diz. Logo outras vozes se juntam num rol de nomes que ficaram na história da cidade: a Caveira, a Recor, a Marques Neves, a Lais Ferreira, o Dragão, a Sardinal, a Joana D’Arc, a Antónia Luças… vão dizendo, enquanto a faca que têm nas mãos dá um corte certeiro que leva a cabeça e a tripa às sardinhas, ainda brilhantes. “Matosinhos era mais bonito”, diz uma das mulheres. Memória puxa memória e rapidamente Armanda Barros, 61 anos (e, tal como Laurinda, 43 de casa), põe todas a recordar “os carrinhos de pau que vendiam perfumes feitos de pétalas de rosa”. “E as que vendiam sameirinhas (rebuçados)?!”, acrescenta outra, entusiasmada. Não havendo visitas a meterem conversa, as horas a cortar o peixe passam-se a falar das novelas, “a enterrar vivos e a desenterrar mortos”, diz-nos Laurinda. Nenhuma se deu ao trabalho de contar o número de cabeças de sardinha que corta por dia, mas “é para cima das cinco mil”, estimam. Cortar a sardinha é a primeira etapa. O peixe chega de manhã: “Tanto pode ser às oito como às dez ou ao meio-dia, depende da chegada dos barcos à lota”, explica António Pinhal, o neto do fundador da fábrica, que já foi guiada pelo pai e agora o tem a ele, com 57 anos, no leme, com o filho de 23 anos já a ajudá-lo no negócio. Se o horário da chegada da matéria-prima é incerto é porque quase nada nesta conserveira mudou desde a fundação. O processo de produção mantém-se inalterado desde o primeiro dia (exceção feita à parte da cravação, em que se encerram as latas). Quando às outras fábricas começaram a chegar as câmaras frigoríficas, a família Pinhal resistiu. “A escola que todos nós tivemos é de não haver alterações no processo de fabrico para garantir a qualidade”, revela António, o pai (o filho, tem o mesmo nome), no escritório da fábrica, entre os móveis antigos que estão ali desde sempre. Os 6 mil quilos de sardinha que chegam todos os dias, frescos, da lota de Matosinhos (ou caso ali falte, da lota de Aveiro, Peniche, Figueira da Foz…) e que permitem fechar, a cada jornada, 30 mil latas têm como destino a salmoura. Depois de lhes cortarem a cabeça, as mulheres transportam as sardinhas em cestas de plástico para um dos 12 tanques, que preservam os azulejos originais a numerálos, onde ganham tempero. A salmoura é uma solução de água com sal onde passam 45 minutos. Controlar o tempo, ir deitando o sal e por fim tirar o peixe do tanque é tarefa de homem. Júlio Ferreira, 55 anos, indica-nos o passo seguinte. Para “engrelhar” voltam a entrar em ação mãos femininas. As sardinhas são colocadas na vertical, de cabeça para baixo (força de expressão, nesta fase já não a têm), numa estrutura de alumínio. O intuito é que “escorram a gordura e a água durante a cozedura”, explica-nos Joana Cândido, a técnica de controlo de qualidade, que costuma orientar as visitas. O que pode parecer um pormenor é outro dos segredos que está por detrás do sabor ímpar destas conservas. “Hoje as sardinhas costumam ser cozidas já dentro da lata o que não permite que libertem a água e a gordura”, elucida a guia. Antes de entrarem no forno, ainda serão mergulhadas num tanque de betão original, com água a cair a toda a volta, para retirar o excesso de sal e garantir que não vai nenhuma escama ou resto de tripa agarrada. Os dois fornos são outra relíquia. Foram adaptados, mas são os de origem. Acolhem as sardinhas durante dez a doze minutos, dependendo do tamanho, e cozem-nas a vapor a 110 graus.