Já foram bem mais de uma centena, com nomes tão espirituosos como o “Olho do Cú”, “O Homem do Gás” ou o “Mija-Cão”. Algumas foram mudando de nome à medida que mudavam de proprietário e outras, muitas, encerraram. Hoje não chegam às três dezenas – 27, segundo o levantamento feito pela autarquia – as típicas tascas de Coimbra, a maioria delas situada na Baixa. Com a “bênção” da LATA (a Liga dos Amigos das Tabernas Antigas), os proprietários dos espaços que restam estão agora a ser alvo de sensibilização para modernizarem as tabernas mas sem as deixarem perder a identidade. Até porque, por ali, passou muita da história de Coimbra e de Portugal.
Paulino Mota Tavares, 70 anos, historiador e um dos presidentes da LATA – a “pseudo”-instituição é tão democrática que todos os membros são simultaneamente presidentes, tesoureiros e vogais -, é um dos mais entusiastas da criação desta “Rota das Tabernas”. A ideia, confessa, “é musealizá-las sem as cristalizar” ou, trocado por miúdos, manter cenograficamente os espaços, com as pipas, o papel de cantareira a adornar os móveis, ou os copos de três, mas torná-los mais limpos e asseados e ao mesmo tempo modernizá-los, “variando a oferta de petiscos e introduzindo também as sopas, a doçaria ou os licores, por exemplo”. E, aos poucos, a coisa vai, garante Mário Nunes, o vereador da Cultura da Câmara de Coimbra, responsável “pelo trabalho de sapa” de mentalizar os proprietários para as alterações e, “ao mesmo tempo sensibilizar também as autoridades, nomeadamente a ASAE, para que percebam o que está a ser feito e tenham alguma flexibilidade”.
A República e a porta do cavalo
Um bom exemplo da evolução que os responsáveis pretendem é o que está a ser feito na “Democrática”, cujas obras de remodelação estão quase concluídas. Com alvará desde 1840, o mais antigo de todas, a adega, com duas entradas, era um local muito procurado por estudantes para grandes ou pequenas conspirações contra o regime do Estado Novo. Nessa altura, conta Nélson Silva, 40 anos, actual dono, “quando a PIDE entrava por uma porta, a malta pirava-se pela outra, que ficou assim a ser conhecida pela porta do cavalo”. Foi aqui, por exemplo, que foi praxada a primeira aluna da Universidade. A fama da “Democrática” é tal que ainda hoje, em períodos de campanha eleitoral, político que se preze, não deixa de lhe fazer uma visita. Quanto mais não seja para recordar o magnífico arroz de polvo, “molhado mas não escorrido”, uma receita “ultra-secreta” que vai passando de mão em mão pelos vários proprietários.
Mas, pelas tabernas de Coimbra, até a República chegou muito antes da hora. Na pesquisa aturada, e feliz, que foi fazendo ao longo de anos, Paulino Mota Tavares encontrou um documento a provar que “na madrugada de 26 de Agosto de 1849 foram dadas vivas à República”. Como o 5 de Outubro só chegou passados 61 anos, é claro que os autores de tal afronta acabaram detidos, acusados de “fazerem parte das forças rebeldes, tidos e havidos por vadios”.
Do “espólio” do fundador da LATA, que vai recolhendo tudo o que encontra sobre a história das tabernas, consta também um prato em louça com parte do rebordo recortada em forma de meia-lua que servia para os clientes fazerem a barba. Aliás, ainda de tempos mais remotos, recorda Paulino Tavares, era um compartimento que quase todas as tabernas tinham, chamado a casa da corda, “uma pequena sala com um banco corrido, junto ao qual pendia uma corda bamba presa entre duas paredes”. Era aí que ficavam os que tinham bebido mais do que a conta, sentados no banco, com a cabeça a cair sobre os braços que se apoiavam na corda. Muito provavelmente, supõe o historiador, “terá sido assim que nasceram expressões como “andar com a corda na garganta” ou “andar na corda bamba”.
Das mais antigas tradições mantêm-se ainda hoje os garrafões pendurados à entrada e os ramos de louro na porta, presentes em quase todas as tabernas. O louro servia não apenas para anunciar bom vinho como dava uma ajuda a quem não queria ir para casa com um hálito que o denunciasse. A solução era arrancar uma folha do ramo e ir a mascá-la pelo caminho. Sempre dava para disfarçar.
Não há registo que figuras ilustres da nossa Literatura, como Eça de Queiroz, Antero de Quental, João Penha ou Guerra Junqueiro tenham necessitado de recorrer a tal prática. Mas destes dois últimos ficou famosa uma “desgarrada” havida no já extinto tasco “O Homem do Gás”. Gonçalo Reis Torgal, professor jubilado da Universidade de Coimbra, chegou a incluir o episódio numa volumosa obra “Coimbra, Boémia da Saudade”. Aí refere como João Penha e Guerra Junqueiro, a carvão, escrevinhavam picardias alternadamente nas paredes da taberna, com uma verve de fazer inveja. Curiosamente, desses tempos em que Coimbra deu guarida a alguns dos mais ilustres vultos da História de Portugal, são poucos os registos. Muito vagamente há algumas referências também a outro estabelecimento já encerrado, a Tasca das Camelas, assim chamado por ser pertença de três irmãs com tal apelido, curiosamente todas elas também chamadas Maria.
Mais frequentadas hoje por alunos da Academia que por futricas – não estudantes – algumas tabernas vão hoje tirando alguns benefícios da crise. Nalgumas ruas da Baixa, enquanto os restaurantes estão quase às moscas, as tabernas têm gente até à porta. É o que acontece na Casa Chelense, na rua das Rãs – a preferida pelos membros da LATA para os encontros mensais, por causa da sala de jantar contígua, que permite albergar as mais de 30 pessoas. Principalmente ao final da tarde, mas também ao longo da manhã e à hora do almoço, Sérgio Santos, 32 anos, filho do dono, vai servindo os petiscos feitos pela Dona Cândida. A variedade é grande, desde a raia, ao bacalhau, passando pelo carapau, pela dobrada, pelas bifanas ou pelas sardinhas em molho de escabeche. E quase tudo bem regado com o tinto almalaguês de Rio Galinhas. É que nestas coisas há sempre prioridades e o azulejo encostado ao balcão não dá espaço para dúvidas: “Eu gosto muito de água/Toda a água me sabe bem/A água que eu mais gosto/É a água que o vinho tem”. Mái nada!