A mão estica, dobra, segura, pressiona, constrói… mas também chama, ameaça, acusa, despreza, acalma ou acaricia – e muito mais. Apesar de se tratar de uma parte relativamente pequena do corpo, a mão reveste-se de uma importância excecional, dada a função que desempenha em muitos – senão na maior parte – dos nossos gestos e atividades. E tudo isto porque a mão está apetrechada de uma quantidade imensa e complexa de estruturas, as quais lhe dão maleabilidade, precisão e sensibilidade.
“A mão é um dos aparelhos com mais minúcia e mais pormenor”, explica Rúben Malcata Nogueira, especialista em Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética, no Centro de Hospitalar de Lisboa Ocidental (CHLO), para sublinhar que “a precisão nos movimentos e a quantidade de articulações” fazem deste órgão “uma pequena magia”.
Horácio Zenha, presidente da Sociedade Portuguesa da Cirurgia da Mão, assinala o “conjunto altamente delicado e harmonioso de ossos, músculos, tendões, vasos e nervos”, complexidade que, diz, “torna a cirurgia da mão especialmente desafiadora”. Rúben Malcata Nogueira nota ainda que “qualquer pequeno desarranjo” vai ter sempre implicações. E exemplifica: “Temos um tendão que estica e outro que dobra; se cortamos o que estica, o outro também vai sofrer”.
Além de delicada, a cirurgia da mão é uma intervenção muito frequente nos nossos hospitais. Apesar de os dados não estarem devidamente registados em Portugal, podemos dizer que estas operações representam “incidências bastante significativas em termos de saúde pública”, revela Horácio Zenha, cirurgião plástico no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho. Por exemplo, aponta, “a síndrome do túnel cárpico (compressão no punho de um dos nervos mais importantes da mão) é uma das patologias mais frequentes, e a prevalência nos Estados Unidos da América é de 5% na população em geral, podendo chegar até 50% em grupos de alto risco. A incidência é de 1 a 3 casos por 1000 ao ano, na população em geral, e de 150 por 1000 ao ano, em grupos de alto risco”.
Além disso, revela ainda, as lesões traumáticas “continuam a ser das causas mais frequentes de admissão nos serviços de urgência hospitalar (cerca de 20% dos traumas)”. Rúben Malcata Nogueira confirma: “A patologia traumática da mão é muito frequente, sobretudo em trabalhadores manuais em idade laboral, sejam operários sejam pessoas que trabalham com máquinas”, revela. Lesões que, note-se, podem ser “completamente devastadoras”.
“As amputações de mão, por exemplo, são situações em que a pessoa está em risco de vida, porque perde imenso sangue”, nota Rúben Malcata Nogueira. Além disso, acrescenta, “é uma coisa altamente debilitante, mesmo fazendo a reconstrução”. Horácio Zenha confere que as sequelas de acidentes com a mão “são enormes e altamente impactantes na vida dos pacientes”.
Há acidentes, menos graves mas igualmente frequentes, seja um simples corte feito em casa, resolvido em ambulatório com meia dúzia de pontos, seja uma patologia traumática óssea, em que é necessário recorrer a uma cirurgia com placas e parafusos. Acresce ainda a lesão dos tendões e dos nervos. “Cada dedo tem, fundamentalmente, dois nervos, um de cada lado. Ora, se fizer um corte, a pessoa pode deixar de sentir a ponta do dedo”, explica Rúben Malcata Nogueira. E estes acidentes com os chamados nervos digitais colaterais “são de uma frequência brutal em acidentes domésticos”.
Cada caso é um caso. “Se forem cortes lineares, por exemplo o de uma faca, à partida ambos os focos nervosos vão estar bem e, portanto, conseguimos fazer aquilo que chamamos uma neurorrafia direta (restauração da ligação de um nervo)”, explica o cirurgião plástico do CHLO. Mas há situações em que isso não é possível, sendo preciso recorrer a “condutos nervosos – feitos em laboratório e que servem para o nervo crescer e ir ter ao outro topo – ou ir buscar outro nervo ao corpo, quer sejam nervos sensitivos do antebraço ou da perna. Ou seja: vamos ter de tirar um nervo de um sítio em que faz falta, mas onde não faz tanta diferença como na mão”.
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Malformações e doenças
Além das cirurgias à mão decorrentes das lesões traumáticas, existem ainda as intervenções para resolver malformações congénitas. Aqui, “o mais frequente são os dentes colados, a chamada sindactilia, mas também há dedos a mais, falta de dedos, malformação do polegar e articulações que não funcionam”, explica Horácio Zenha. Se alguns casos são relativamente “fáceis de resolver”, já outros podem exigir intervenções mais delicadas.
É o caso da “ausência completa” do dedo. Neste caso, revela o cirurgião, “é possível ir buscar um dedo ao pé, porque, apesar de os dedos terem uma constituição muito específica, a anatomia é igual”. Por isso, no final da reconstrução, “o dedo do pé fica a funcionar na mão como se fosse um dedo original”, sublinha.
Finalmente, temos as operações à mão que se devem a patologias adquiridas, desde doenças degenerativas a lesões tendinosas, passando pelos tumores.
Uma das mais frequentes é a síndrome do canal cárpico (compressão no punho de um dos nervos mais importantes da mão), doença associada a determinados fatores de risco e que causa dor, formigueiro ou perda de sensibilidade nos dedos médio, indicador e polegar e na palma da mão.
Mas há mais, como a doença de Dupuytren, originada por um espessamento anormal da fáscia palmar (tecido entre a pele e as estruturas da palma da mão e dos dedos) e que pode limitar a mobilidade de um ou mais dedos; a rizartrose, que afeta a articulação carpometacarpiana do polegar; a tenossinovite digital estenosante, também conhecida como dedo em mola, que impede o deslizamento livre dos tendões, e os tumores da mão.
CUIDADO EM CASA
“Continuamos a assistir diariamente a mutilações gravíssimas da mão em acidentes domésticos.” O alerta é de Horácio Zenha, presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia da Mão, que aponta ainda as sequelas “altamente impactantes na vida dos pacientes”. Por isso, defende um “investimento público na prevenção e informação destes acidentes, no contexto quer laboral quer doméstico”.
“A facilidade que existe na aquisição de instrumentos de bricolage (tipo rebarbadoras e afins) em estabelecimentos comerciais não é minimamente acompanhada de formação e prevenção adequadas”, denuncia Horácio Zenha. Também o cirurgião Rúben Malcata Nogueira aponta “muitas lesões com serras elétricas e motosserras”, além de uma “quantidade de coisas rotineiras” potencialmente perigosas que fazemos em casa. E dá dois exemplos: “Já apanhei duas pacientes que se cortaram a separar com a faca douradinhos congelados. E há uma máquina do tipo fiambreira que muitas pessoas têm em casa e na qual cortam as pontas dos dedos… e isto pode originar situações complicadas”.
Aqui, a variedade é grande. Entre os tumores benignos, citem-se, por exemplo, os quistos sinoviais (dilatação da membrana que acumula a sinóvia, um líquido lubrificante que facilita o deslizamento dos tendões), os lipomas (nódulos de gordura), os angiomas (acumulação normal de vasos sanguíneos) e os tumores de células gigantes (na bainha do tendão).
Dos malignos, temos principalmente (mais de 90%) os tumores da pele, divididos em melanomas, com agressividade elevada pelo seu potencial metastático, e os não melanomas. A propósito, Rúben Malcata Nogueira alerta: “Mesmo quando as pessoas se preocupam com o sol, normalmente esquecem-se das mãos.”
Para lá dos tumores, o cirurgião destaca em particular as doenças reumatológicas, que podem ter sérias consequências nas extremidades dos membros superiores. “A artrite reumatoide, por exemplo, é um pesadelo para a mão, porque leva a uma destruição articular. Ora, como a mão é um balanço superdelicado, basta ter uma lesão numa articulação para interferir completamente no seu funcionamento.”
Outra situação complicada ao nível das patologias reumatológicas é a rotura dos tendões tensores. “A pessoa vai fazendo a sua vida normal, tem a sua doença reumática mais ou menos compensada e, um dia (e isto é relativamente frequente em termos de sintomas), está a tentar mexer a mão e deixa de conseguir esticar um dedo – quer dizer que o tendão rompeu”, conta Rúben Malcata Nogueira, adiantando que, “neste caso, raramente é possível usar os tendões como estão para voltar a juntá-los”, sendo então necessário recorrer à chamada transferência tendinosa, ou seja: “Transferimos tendões de uns sítios para os outros, para termos um melhor balanço da mão.” Sempre com muita ponderação.
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A vida de cada um
“Depois da reconstrução, isto pode voltar a acontecer, e a probabilidade de se ter de fazer outra cirurgia é muito grande”, explica o especialista em cirurgia da mão. Por isso, nota, “temos de ter em mente que, quando usamos uma hipótese reconstrutiva para um dedo, podemos estar a hipotecar essa hipótese para outro” e “falar muito bem com os pacientes sobre as várias possibilidades”. Precisando, exemplifica: “Se eu usar logo várias armas para o quinto dedo, depois já não tenho essas armas para outros mais importantes, capazes de assegurar uma função crucial (as duas coisas fundamentais na mão são conseguir uma pinça e um punho estável)”.
Estas decisões, prossegue, muitas vezes têm que ver com o paciente. “É completamente diferente se o doente for um pianista ou se trabalhar numa secretária”, diz. Assim, há que “perceber qual é a mão dominante do paciente, em primeiro lugar, a idade, o tipo de patologia que tem, a função em termos laborais, o que gosta de fazer em termos lúdicos (se gosta de pintar nos tempos livres e se isso lhe traz muita qualidade de vida, não o podemos privar disso…)”. E há que ter em conta o tempo de recuperação: reconstruções complexas exigem maiores tempos de reabilitação, o que para alguns “pode ser dramático”.
Outra questão a ter em conta é a reabilitação versus a estética. “Dizemos sempre que a mão é igual a função, e não pensamos tanto ao nível estético”, mas obviamente que o ideal é termos “uma ótima função e uma cicatriz bonita”, diz o cirurgião. “Quando, na consulta, os pacientes nos dizem que uma parte de um dedo ou uma cicatriz não está bonita, isso são ótimas notícias – se a preocupação é essa, já é bom sinal.”
Posto isto, é mais complicado reparar uma lesão por acidente do que por doença? Também aqui, tudo depende. “No caso de uma artrite reumatoide, por exemplo, em que os tendões começam a romper-se espontaneamente, trata-se de uma mão que é muito difícil de reconstruir, comparativamente a um corte simples de um nervo”. Por outro lado, acrescenta, “se pegarmos num caso complexo de trauma ou numa criança que nasceu só com um dedo e em que temos de ir buscar dedos do pé para a criança pelo menos ter dois dedos para fazer uma pinça, isso também é complicado”.
Finalmente, refira-se que estamos perante “uma área dinâmica”. A justificar, Horácio Zenha destaca as “inovações ao nível da regeneração nervosa e de tecidos e de próteses cada vez mais sofisticadas”, que têm melhorado significativamente os tratamentos e, assim, a qualidade de vida dos pacientes.
UMA ÁREA “MENORIZADA”
Ao contrário do que se passa noutros países, em Portugal a cirurgia da mão não é uma especialidade médica autónoma, com um programa de formação específico, mas uma área de conhecimento partilhada pela Cirurgia Plástica e pela Ortopedia, ou seja: “existem alguns cirurgiões plásticos e alguns ortopedistas que se interessaram e fizeram formação, estando assim mais diferenciados e dedicados à cirurgia da mão”, explica o presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia da Mão (SPOCMA), Horácio Zenha.
Esta realidade torna ainda mais difícil a obtenção, ao nível do SNS, de números objetivos relativos especificamente à cirurgia da mão. “A lista de espera da mão está misturada com os números de outras patologias, quer da cirurgia plástica quer da ortopedia”, nota Horário Zenha. Ainda assim, garante: “É possível afirmar que as listas de espera destas duas especialidades médicas são particularmente grandes e a resposta insuficiente.” Especificando, adianta que numa cirurgia à mão “dita normal, causada, por exemplo, por uma doença degenerativa, a espera é de cerca de seis meses, enquanto um caso prioritário pode demorar um a dois meses”.
Neste momento, a SPOCMA, que periodicamente promove ações de formação e de intercâmbio entre profissionais, congrega a larga maioria dos cirurgiões da mão em Portugal (atualmente conta com cerca 140 associados), com o total de médicos a rondar as duas centenas, um número insuficiente.
No fundo, reconhece, “poderá existir alguma tendência para menorizar a patologia da mão”. É que, justifica, “apesar da importância inegável das mãos nas nossas vidas, tradicionalmente, e como não se trata de uma estrutura vital no sentido-limite de risco de vida, não era uma área considerada prioritária”.