“Desleixei-me e, como se costuma dizer, paguei caro”, conta Paulo Matos, 58 anos, enquanto sobe, determinado, um lance de escadas. De sapatos ortopédicos e passada confiante, ninguém diria que, até maio do ano passado, não conseguia usar calçado fechado. “Isto não foi nenhuma brincadeira, sobretudo tento em conta a minha idade”, assegura.
Diagnosticado com diabetes tipo 2 há 19 anos, através de análises de rotina, o assistente técnico de aviação civil fiou-se no silêncio dos sintomas e na progressão lenta, características deste tipo da doença, vivendo 17 anos naquilo que define como “um desleixo total”. Deixou a medicação, evitou a realização frequente de análises, não teve particulares cuidados com a alimentação nem com o controlo regular do valor das glicemias, “que chegaram a estar nos 240 em jejum, quando deveriam estar abaixo de 100”.
Tudo mudou em agosto de 2019, quando o que começou como um corte, aparentemente insignificante, no dedo grande do pé, transformou-se, de um dia para o outro, “numa coisa de outro mundo, cheia de pus”. A infeção no dedo começou a alastrar, fazendo inchar o peito do pé, e os médicos só descansaram ao perceber que, pelo menos, ainda havia circulação sanguínea.
“O que leva a estas complicações nos pés é uma conjugação de fatores que tem que ver com o facto de as artérias irem ficando cada vez mais estreitas, como se fosse um processo de ateroesclerose acelerada”, explica o diretor clínico e pedagógico da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP), João Raposo. O médico refere que o chamado pé diabético é uma das consequências da diabetes não controlada e sublinha que o facto de o sangue não chegar ao pé tão facilmente dificulta também a ativação dos mecanismos de cicatrização e combate à infeção.
De facto, para eliminar o pus e fechar a ferida, Paulo precisou de dois meses a antibióticos, em repouso absoluto, e mais cinco de visitas diárias à APDP, onde fazia o penso, ainda sem garantias de não perder o dedo. É que, por vezes, como explica Paulo Amado, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina e Cirurgia do Pé, se a situação evoluir para uma infeção profunda, atingindo os planos ósseos, “há necessidade de tratamento cirúrgico, com amputações de partes do pé ou até de todo o pé”.
Um ano e meio, oito quilos perdidos e dois fechos falsos mais tarde, Paulo acredita que, finalmente, a ferida terá cicatrizado sem líquido dentro e que poderá voltar ao trabalho e às caminhadas, que também ajudarão a manter os valores da glicemia controlados. “Fiz ontem análises e está tudo bem, até me deram os parabéns. Mudei alguns hábitos alimentares, pico o dedo todos os dias e as análises passaram de anuais a semestrais, mas a medicação com dois antidiabéticos, para regular também o colesterol, é muito importante”, conta, assegurando: “A diabetes tem muito que ver com a rotina, e isso ditará o futuro, para o bem ou para o mal. Não foi uma questão pontual que me trouxe até aqui.”
Quando os rins não aguentam mais
Rotina, ou falta dela, foi também o que conduziu Manuel Subtil até à clínica de hemodiálise que frequenta há um mês e meio. Ainda que a diabetes e o excesso de peso sejam recordações do passado, graças a uma cirurgia metabólica realizada há dez anos, os rins parecem ter sido de tal forma fustigados que acabaram por não aguentar. “Cheguei a ter mais de 300 de glicemia, mas o problema é que a pessoa tem estes valores e não sente absolutamente nada. É uma doença que faz mal, mas não dói, é silenciosa.”
Um silêncio que, ao longo de 20 anos, levou Manuel, primeiro, a ter de tomar insulina três vezes por dia e, depois, a submeter-se à cirurgia metabólica, com a qual perdeu 35 dos 104 quilos que tinha, tendo estabilizado a diabetes. Esta solução, explica o cirurgião metabólico Rui Ribeiro, destina-se aos casos mais difíceis, de pessoas com diabetes tipo 2 e obesidade de grau 2 ou 3, “em que os antidiabéticos orais têm dificuldade em controlar as glicemias”.
Embora, na maioria dos casos, como aponta Rui Ribeiro, “a operação reduza claramente as consequências tardias da diabetes, como a cegueira, a insuficiência renal, a neuropatia e as doenças isquémicas cardíaca e cerebral”, no caso de Manuel, apesar de ter conseguido estabilizar a doença, abandonar a insulina e os antidiabéticos orais, a função renal já se encontrava comprometida. “O mal estava feito, já não ia a tempo. Adiei o mais que pude, mas sabia que a hemodiálise seria inevitável, porque os médicos iam-me dizendo que já só tinha 60%, e depois 30%, da capacidade renal.”
João Raposo esclarece que as complicações da diabetes se dividem essencialmente em problemas dos grandes e pequenos vasos. “Nos pequenos vasos, além da retinopatia, que leva à cegueira, e da neuropatia, a doença dos nervos periféricos, que dá alterações da sensibilidade, temos a nefropatia, que leva à insuficiência renal.” O problema das lesões nos vasos sanguíneos pelo excesso de açúcar em circulação é, portanto, como observa o endocrinologista Mário Rui Mascarenhas, “que o sangue circula por todo o lado, levando oxigénio e nutrientes através das artérias que, ao ficarem lesadas, vão lesar outras estruturas, nomeadamente os nervos que enervam os músculos, a pele e os órgãos”.
Segundo a endocrinologista Catarina Coelho, cerca de 40% das pessoas com diabetes acabam por desenvolver complicações tardias. No entanto, “se a glicemia, a tensão arterial e os lípidos estiverem controlados, e forem feitos os rastreios devidos, é possível diminuir esta percentagem, bem como a gravidade das várias complicações”, garante a médica.
O efeito devastador das más rotinas
Tudo o que Pedro Roma, 34 anos, não fez. Pedro sofreu de diabetes tipo 1 dos 5 aos 27 anos, idade em que acabou por ser submetido a um transplante do rim e do pâncreas. Ao contrário da diabetes tipo 2, que se deve a uma resistência das células à ação da insulina, a de tipo 1 é provocada por uma destruição precoce do pâncreas, de origem indeterminada, e, muitas vezes, autoimune – que, como indica João Raposo, faz com que as pessoas por ela afetadas sejam necessariamente insulinodependentes, para conseguirem manter a doença compensada.
“Na altura, tomava uma insulina de longa duração, à noite, e depois outra de manhã”, conta Pedro, afirmando nunca ter deixado esta forma de controlo da doença, mas revelando que a adolescência traria uma série de outros descuidos, que se repetiriam ao longo dos 11 anos seguintes. “No 6º ano, entrei num café que vendia gomas, comprei-as, comi-as e vi que não me acontecia nada, que a subida do açúcar acabava por diminuir por eu ser muito mexido. E achei que conseguia controlar a coisa dessa forma. Foi algo irracional e, ao mesmo tempo, uma necessidade de querer ser normal.”
No entanto, aos 20 anos, Pedro comia “o dobro de uma pessoa normal”, começou a fumar e a beber bebidas alcoólicas e, aos 21, trabalhava horas atrás do volante de um camião, “sem horários nem rotinas para a insulina”. A fraqueza que sentia e os 35 kg que entretanto perdeu, deixando-o com 1,70 m e 43 kg, não o impediram de trabalhar mais um ano. Até que, uma manhã, sem aviso, tudo mudou: “Saí de casa e senti um clique na cabeça, como um elástico a rebentar. Aos 23 anos, a neuropatia diabética, juntamente com um glaucoma, tinha acabado de me rebentar os nervos óticos. E deixei de ver.”
Anos de excessos e níveis de glicemia elevados levaram àquilo que Mário Rui Mascarenhas define como “lesão das pequeninas artérias da retina, que, a pouco e pouco, provocam a destruição de estruturas que fazem parte da nossa visão”.
Liliana Costa, atual companheira de Pedro, também perdeu a visão devido a uma diabetes tipo 1 mal controlada. No caso desta jovem de 38 anos, o problema não foi a falta de rotina, o abandono da insulina ou o desleixo – que, aliás, nunca pautaram o modo como tratou a doença desde que foi diagnosticada, aos 9 anos –, mas sim o resultado de uma gravidez que se tornou agressiva. “Não tinha o menor controlo nos valores da glicemia: tão depressa estavam altos como baixos. Tinha picos, em que sentia mesmo a diabetes fora de controlo e não conseguia fazer nada, nem com a alimentação, nem com as caminhadas”, recorda. A subida descontrolada da glicemia acabaria por ditar o fim da gravidez, a perda de 90% da visão e o desenvolvimento de uma insuficiência renal que a obrigou a fazer diálise peritonial durante dois anos, após a qual, tal como Pedro, foi sujeita a um transplante do rim e do pâncreas. “Foi como ser atropelada três vezes por um camião. Aconteceu-me tudo muito depressa.”
O transplante que livrou o casal da diabetes é, segundo João Raposo, “uma cirurgia complicada, que necessita de equipas muito treinadas e pode registar alguma falência no tempo de vida do transplante”. “Os transplantados, infelizmente, têm um prazo”, concorda Liliana, admitindo: “De qualquer forma, agora temos uma vida normal, sem restrições alimentares diferentes das outras pessoas ou necessidade de medir glicemias. Quando o fazemos, é mesmo mais por uma questão de curiosidade ou descargo de consciência.”
Reformados por invalidez, Liliana e Pedro tiveram, entretanto, aulas de mobilidade, aprenderam regras de segurança na cozinha, passaram a usar computadores com voz e, graças ao cão-guia Madrid, ganharam ainda mais independência. “Tivemos de abrir, de novo, a janela para o mundo, que se estava a fechar com esta perda de visão”, afirma Liliana.
O equilíbrio resulta em saldo positivo
Quem nunca chegou a fechar a janela para o mundo foi João Nabais, que reconhece mesmo: “A diabetes ajudou-me a abrir portas.” O professor universitário, de 52 anos, tem diabetes tipo 1 desde os 12 e é o exemplo vivo de que controlo e equilíbrio permitem às pessoas que têm diabetes levar uma vida normal. Ao longo de 40 anos de convivência com a doença, João passou das seringas de vidro às de plástico e usou canetas de insulina, que, há dez anos, trocou por uma bomba infusora de insulina, munida de um algoritmo capaz de ir adaptando, automaticamente, a dose de insulina aos níveis de açúcar no sangue. João não esconde que “toda a gente se sente revoltada, numa fase da vida, por ter diabetes”. No entanto, brinca e comenta: “Uma pessoa com diabetes tem de ter o pâncreas na cabeça.” Foi este o seu caso e, no decurso dos anos, manteve-se fiel à contagem dos hidratos de carbono e à compensação dos mesmos com doses de insulina.
Além disso, até hoje, nunca deixou de jogar futebol, atividade que iniciou no ano do diagnóstico, depois de o médico ter aconselhado a prática de exercício físico. João Raposo, diretor clínico da APDP, sublinha que “encontrar uma atividade física que não represente um sacrifício contribui para que exista prazer no tratamento, o que é muito importante, pois leva à manutenção do comportamento”. No caso de João Nabais, a constância foi tal que, em 2013, acabou por fundar a primeira equipa de futsal que representou Portugal no Campeonato Europeu de Futsal para pessoas com diabetes. “Temos membros de Faro até Mirandela. O que nos une é a diabetes, a paixão pelo desporto e a vontade de provar que a doença, quando bem tratada, não é uma barreira que impede as pessoas de alcançarem os seus sonhos.”
Novas armas
Ainda não tem preço nem data de lançamento no mercado, mas o protótipo de espécie de smart watch, que promete monitorizar a glicose de forma contínua e não invasiva, já foi apresentado oficialmente em janeiro deste ano, na feira de tecnologia Consumer Electronics Show (CES).
A responsável, a Quantum Operation Inc., uma startup de saúde com sede em Tóquio, utilizou uma tecnologia de espectro, patenteada pela empresa, através da qual o dispositivo mede a glicose da corrente sanguínea, 24 horas por dia, sete dias por semana, através da pele, libertando as pessoas com diabetes da rotina diária de picar o dedo, a fim de aferirem este valor. A empresa japonesa assegura ainda que o dispositivo permite partilhar os dados registados com o profissional de saúde que acompanha o paciente.
“A operação reduz as consequências tardias da diabetes, como a cegueira, a insuficiência renal, a neuropatia e as doenças isquémicas cardíaca e cerebral”.