“Até agora, a grávida a quem aconselhei a vacinação mais cedo de todas estava nas 16 semanas de gestação”, conta Maria José Alves, responsável pelo serviço de medicina materno-fetal da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa.
Segundo a norma estabelecida pela Direção-Geral da Saúde (DGS), “recomenda-se a vacinação da grávida a partir das 21 semanas de gestação, após a realização da ecografia morfológica”. Contudo, “não existe idade gestacional limite para o início da vacinação”.
Maria José Alves considera “prudente aguardar até às 12 semanas”, uma vez que é no primeiro trimestre que acontece o processo da organogénese, que dá origem aos órgãos internos do feto. Como tal, é mais provável ocorrerem malformações durante esse período.
“Se for diagnosticada uma anomalia no bebé de uma senhora vacinada, mesmo que o problema não esteja relacionado com a imunização, ele terá de ser investigado como se estivesse”, explica a obstetra. Assim, adiando a inoculação para depois das 12 semanas, elimina-se essa suspeita, já que é altamente improvável que surjam deformações congénitas depois dessa fase.
Segundo a DGS, “recomenda-se a vacinação da grávida a partir das 21 semanas de gestação,
após a realização da ecografia morfológica”
No entanto, a especialista da MAC tranquiliza quem possa ter sido vacinada durante o primeiro trimestre: “Não é preciso ficar preocupada porque não existe risco acrescido de malformação”. Aliás, a própria norma da DGS estabelece que “caso seja iniciado o esquema vacinal, sem conhecimento prévio da situação de gravidez, o mesmo deve ser completado no intervalo recomendado, independentemente da idade gestacional”.
A obstetra Ana Luísa Areia reforça que não existe qualquer contraindicação em vacinar mais cedo, mas aconselha, igualmente, prudência no primeiro trimestre. “Não pelos riscos causados pela vacina em si, mas devido à possibilidade de sofrer efeitos secundários, como febre alta, que podem ser prejudiciais para o feto durante a organogénese”, esclarece.
Todavia, a vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal (SPOMMF) não é adepta de que todas as gestantes aguardem até às 21 semanas para serem imunizadas, tal como recomenda a DGS. “Se uma mulher for contactada para ser inoculada às 14 semanas, por exemplo, não deve adiar a marcação”, aconselha.
A também médica da Maternidade Doutor Daniel Matos, integrada no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, sugere que a vacina seja administrada entre as 12 e as 21 semanas de gestação.
No entanto, são vários os países que estão a imunizar em todas as fases da gravidez, como é o caso dos Estados Unidos da América (EUA) ou de Israel.
O medo das grávidas
A recomendação de vacinar a partir das 21 semanas “foi uma opção baseada no bom senso”, explica o obstetra Diogo Ayres-de-Campos, consultor da DGS e um dos especialistas que ajudou a definir as regras relativas à vacinação das grávidas.
“As normas estão sempre em revisão”, admite o também presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia (FSPOG). “A decisão de inocular ou não uma grávida depende muito do seu grau de exposição ao vírus, ou das suas comorbilidades [outras doenças]. Em alguns casos, faz sentido que sejam imunizadas no final do primeiro trimestre, mas se estiverem protegidas da infeção e forem saudáveis, podem esperar até às 21 semanas”, compara.
A decisão de inocular ou não uma grávida depende muito do seu grau de exposição ao vírus, ou das suas comorbilidades [outras doenças]. Em alguns casos, faz sentido que sejam imunizadas no final do primeiro trimestre, mas se estiverem protegidas da infeção e forem saudáveis, podem esperar até às 21 semanas
diogo ayres-de-campos, presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia
Maria José Alves sustenta que a antecipação da vacinação deve ser avaliada por um médico, “caso a caso”, de acordo com o risco de a mãe sofrer uma infeção grave, sempre agravado por problemas respiratórios, diabetes, hipertensão ou obesidade, entre outras patologias. A mulher a quem aconselhou a injeção às 16 semanas tinha outras doenças associadas e, por isso, maior probabilidade de ficar em estado crítico.
“Vacinar às 21 semanas é suficiente para garantir proteção no terceiro trimestre da gravidez, quando existe maior risco de infeção severa pelo SARS-CoV-2”, afirma a especialista da MAC.
Ana Luísa Areia socorre-se de alguns números para traçar o retrato desta realidade: “Chegou-se à conclusão de que 1% daquelas que contraem Covid-19 no último trimestre são internadas e 0,3% acabam por precisar de ventilação invasiva”. As mulheres estão particularmente vulneráveis nos últimos meses antes do parto porque é nessa fase que o seu sistema imunitário está mais fragilizado.
Não é necessário as gestantes apresentarem uma declaração médica no momento da inoculação, dita a DGS. Contudo, Diogo Ayres-de-Campos tem conhecimento de “alguns casos” em que tal foi exigido à chegada aos centros de vacinação.
Maria José Alves diz ser “expectável” que seja pedida uma declaração médica a quem pretender imunizar-se antes das 21 semanas. A VISÃO tentou esclarecer junto da DGS se quem quiser vacinar-se mais cedo tem de apresentar uma prescrição, visto a norma não ser clara quanto a isso, mas não obteve resposta.
Não é a segurança dos fármacos que preocupa a obstetra Ana Luísa Areia, mas a hesitação vacinal entre as grávidas. “Muitas mulheres são contactadas e não querem [ser imunizadas]. Diria que 50% aceita e a outra metade recusa”, lamenta.
Muitas mulheres são contactadas e não querem [ser imunizadas]. Diria que 50% aceita e a outra metade recusa
Ana Luísa Areia, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal
Recentemente, Maria José Alves fez um exercício numa das enfermarias da MAC. Perguntou às cerca de 15 gestantes que lá estavam internadas, devido a outras patologias, se gostariam de ser vacinadas contra a Covid-19. “Apenas duas disseram que sim”, contabiliza, desiludida.
“Ainda há muitas mulheres com receio. A sua relutância advém, muitas vezes, da pressão da família, que tem medo que a inoculação seja prejudicial para o bebé”, afirma.
Já o presidente da SPOMMF, Nuno Clode, tem a experiência contrária: “A maioria das mães quer ser vacinada”, assegura.
O também coordenador do serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital CUF Torres Vedras não tem dúvidas de que todas as grávidas devem ser imunizadas. “É o que recomendam as sociedades obstétricas mais importantes do mundo”, argumenta. “Mesmo sendo raros, quando acontecem, os casos graves podem ser catastróficos”, alerta.
Riscos vs. Benefícios
Um estudo publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology concluiu que o risco de morte do recém-nascido e de parto prematuro é bastante superior em caso de Covid-19.
Num universo de 340 mil gestantes – cerca de 3 500 infetadas – que deram à luz em Inglaterra (entre maio de 2020 e janeiro de 2021), registaram-se 8,5 nados mortos por cada mil nascimentos, no caso das mulheres contagiadas com SARS-CoV-2. Já as mães saudáveis perderam 3,4 bebés por cada mil nascimentos.
Também os partos prematuros (antes das 37 semanas) aumentaram substancialmente. Ascenderam aos 12% nas grávidas com teste positivo e ficaram-se pelos 5,8% no grupo daquelas que não estavam contagiadas.
De acordo com dados do Reino Unido, uma em cada sete gestantes internadas com Covid-19 precisou de cuidados intensivos e uma em cada cinco deu à luz prematuramente
Os dados revelados no final do mês passado pelo organismo de vigilância obstétrica do Reino Unido, o UK Obstetric Surveillance System, vão no mesmo sentido. Além de revelar que foram hospitalizadas mais grávidas com doença moderada ou grave desde que a variante Delta se tornou dominante, estima que uma em cada três gestantes internadas com Covid-19 desenvolve pneumonia, uma em sete precisa de cuidados intensivos e uma em cinco dá à luz prematuramente.
Ana Luísa Areia calcula que a probabilidade de sofrer um parto prematuro seja três vezes superior numa mulher com Covid-19 severa, comparativamente com uma gestante que não esteja infetada.
“Temos mais partos pré-termo nos casos graves. Estão muitas vezes associados às complicações respiratórias decorrentes da doença, como a baixa oxigenação da mãe, que pode ter repercussões no filho. A solução é a interrupção da gravidez para evitar que o bebé fique sem oxigénio”, explica Diogo Ayres-de-Campos. Por isso, a taxa de cesarianas é superior quando existe infeção severa.
Atenção: “Se a doença for ligeira, como é na maior parte dos casos, não é necessário ter preocupações com o parto pré-termo porque não existe esse risco acrescido”, tranquiliza o também diretor do serviço de Obstetrícia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Se a doença for ligeira, como é na maior parte dos casos, não é necessário ter preocupações com o parto pré-termo porque não existe esse risco acrescido
DIOGO AYRES-DE-CAMPOS, PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO DAS SOCIEDADES PORTUGUESAs DE OBSTETRÍCIA E GINECOLOGIA
O especialista admite que a infeção provoca “um ligeiro aumento da probabilidade de morte materna, mas não é significativo”. Desde o início da pandemia, não foi registada nenhuma morte de uma grávida com Covid-19 hospitalizada em Santa Maria. Porém, cerca de uma dúzia precisou de ser ventilada e outras seis receberam Oxigenação por Membrana Extracorporal (ECMO), que substitui temporariamente órgãos comprometidos, como o coração ou os pulmões.
A vice-presidente da SPOMMF avança que o risco de morte da mãe devido ao vírus é de 0,1% mas, quando comparada com pessoas infetadas da mesma idade, que não estejam à espera de bebé, essa probabilidade, ainda que muito baixa, é 70% superior.
Dupla proteção
Quanto aos recém-nascidos, os eventuais problemas decorrem não da infeção, mas do nascimento prematuro, que os deixa mais vulneráveis a complicações. Mesmo quando nascem contaminados, a probabilidade de desenvolverem pneumonia “é baixíssima”, sendo o percurso da doença “quase sempre benigno”.
Apesar de ser raro, acredita-se que será possível as mães transmitirem o vírus aos filhos durante a gestação, mas nem sempre é fácil distinguir se o contágio aconteceu dentro da barriga ou já durante ou após o nascimento. A obstetra Ana Luísa Areia estima que a transmissão vertical ocorra em 2,5% a 3% dos casos.
Por outro lado, no caso das grávidas vacinadas, alguns estudos detetaram anticorpos contra a Covid-19 na placenta, no cordão umbilical e no leite materno, o que pode ser sinónimo de os bebés nascerem já com algum tipo de imunidade contra o SARS-CoV-2. Diogo Ayres-de-Campos nota que tal também poderá acontecer no caso das mães infetadas durante a gestação. Por enquanto, desconhece-se a força ou a durabilidade destes anticorpos.
O presidente da FSPOG considera que, a confirmar-se, a imunidade dos recém-nascidos será uma boa notícia, mas sublinha que a inoculação é sobretudo importante para proteger a mãe de doença grave. E “não há qualquer justificação para haver efeitos negativos no feto”, defende.
Alguns estudos detetaram anticorpos contra a Covid-19 na placenta, no cordão umbilical e no leite materno, o que pode ser sinónimo de os bebés nascerem já com algum tipo de imunidade contra o vírus
“Sabemos que as vacinas contra a Covid-19 são de mRNA ou de vírus inativados e, por isso, não causam doença nem alteram o ADN da mãe ou do feto”, corrobora Ana Luísa Areia. Assim, serão tão seguras quanto os imunizantes contra a gripe e a tosse convulsa, administrados igualmente durante a gestação.
Apesar de as grávidas não terem sido incluídas nos ensaios clínicos que conduziram à aprovação de emergência das vacinas – a Pfizer/BioNTech tem atualmente em curso um teste neste grupo populacional – existem dados sobre o impacto destes fármacos no mundo real, ou seja, nos países que já começaram a vaciná-las.
Até agora, em conjunto, os Estados Unidos e o Reino Unido inocularam mais de 200 mil mães, sem que os relatórios de farmacovigilância tenham detetado problemas de segurança graves – os efeitos secundários mais comuns são dores no braço, cefaleias e cansaço.
Uma investigação do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla inglesa), que analisou os dados de 35 mil gestantes vacinadas nos EUA com os fármacos da Pfizer/BioNTech e da Moderna, concluiu que o risco de sofrer um aborto, ter um parto prematuro e de o bebé nascer sem vida ou com alguma malformação é comparável ao das mulheres não inoculadas.
Já os dados do UK Obstetric Surveillance System mostram que, até ao início de julho, não tinha sido hospitalizada nenhuma grávida com a vacinação completa no Reino Unido.
“O que digo às minhas pacientes é que não estamos apenas a proteger a mãe, mas também o feto”, afirma Ana Luísa Areia. Apesar de admitir que só haverá evidências científicas definitivas sobre o impacto das vacinas nas crianças quando elas tiverem 6 ou 7 anos, a obstetra acredita que, à luz do que já se sabe, os benefícios superam os riscos.
“Há cada vez mais profissionais de saúde a recomendarem a vacinação, mas sei que também há quem tenha uma posição contrária, o que me admira bastante”, confessa Maria José Alves.
“Embora eu respeite quem não quer ser inoculado, explico sempre o significado de ter doença grave no terceiro trimestre. Não o faço por chantagem, mas para informar de forma clara”, garante. A seguir, a escolha cabe à grávida, que tem a responsabilidade de tomar uma das suas primeiras decisões enquanto mãe.