O investigador João Paulo Gomes, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), estava a caminho da reunião que juntou especialistas e políticos esta terça-feira no Infarmed, em Lisboa, quando recebeu uma chamada a informá-lo de que tinha sido detetado mais um caso de Covid-19, em Portugal, correspondente à variante inicialmente identificada na Índia.
Na última semana, foram registadas, então, meia dúzia infeções em território nacional da variante B.1.617, originária do estado indiano de Maharashtra, mas que já está presente em cerca de uma dezena de países.
Segundo João Paulo Gomes, os seis casos foram localizados na região de Lisboa e Vale do Tejo e resultam de “três introduções distintas no país”.
A Índia é o principal produtor mundial de vacinas, garantindo o abastecimento de 60% de todos os imunizantes
A saída da reunião no Infarmed, a Ministra da Saúde, Marta Temido, admitiu que algumas infeções não têm “histórico recente de viagem conhecido até agora, o que pode indiciar transmissão comunitária”, ou seja, o vírus pode já estar a circular livremente entre a população portuguesa.
A B.1.617 exibe 13 mutações, mas duas delas exigem especial atenção: a E484Q e a L425R, daí ser apelidada de “dupla mutante”, mas esta terminologia não é cientificamente correta.
Existem suspeitas de que ela possa ser mais contagiosa ou, até, capaz de resistir a anticorpos, mas ainda não há evidência científica que o comprove. Mais uma vez, será preciso esperar para ver – e investigar.
No entanto, mesmo que esta variante venha a revelar-se pouco perigosa, o descontrolo da epidemia na Índia representa uma ameaça para todo o mundo, uma vez que implica uma maior circulação do vírus entre a população, o que contribui para o desenvolvimento de novas mutações que podem vir a tornar-se preocupantes.
Mas as possíveis consequências do caos vivido pelos indianos não se fica por aqui. Afinal, a Índia é o principal produtor mundial de vacinas, garantindo o abastecimento de 60% de todos os imunizantes.
Farmácia do mundo em crise
Ao nível das vacinas contra o SARS-CoV-2, o indiano Serum Institute anunciou que não vai conseguir cumprir os seus compromissos internacionais devido à escassez destes fármacos na Índia para fazer face a esta nova vaga sem precedentes.
O Serum Institute é o maior fabricante mundial de imunizantes e um dos produtores da injeção da AstraZeneca, mas também é um dos principais fabricantes associados à iniciativa Covax, que pretende fazer chegar vacinas a países em desenvolvimento.
Noventa e dois países em desenvolvimento contam com a indústria farmacêutica indiana para protegerem a sua população, mas estão a ser confrontados com limitações no fornecimento devido às obrigações domésticas do gigante asiático.
Até ao momento, a Índia só inoculou 1% da sua população de 1,4 mil milhões de pessoas
Até ao momento, a Índia só inoculou 1% da sua população de 1,4 mil milhões de pessoas contra o SARS-CoV-2, apesar de ter uma capacidade de produção de 70 milhões de doses por mês. Atualmente, estão a administrar 3 milhões de vacinas por dia, o que os especialistas consideram insuficiente.
A farmácia do mundo está, agora, a ser obrigada a importar vacinas.
O impacto que a nova vaga indiana pode ter no mundo tem dado origem a vários apelos de solidariedade internacional.
Os Estados Unidos da América comprometeram-se, esta semana, a prestarem um “apoio inabalável” à Índia. O presidente Joe Biden prepara a distribuição de 60 milhões de doses da vacina da AstraZeneca (que ainda não foi aprovada nos EUA) por vários países.
Portugal vai mobilizar a Proteção Civil e os ministérios da Saúde e dos Negócios Estrangeiros para apoiar o país, através dos mecanismos da União Europeia. Foi esta quinta-feira anunciado que serão enviados medicamentos antivirais e oxigénio.
Há algumas semanas, o CEO do Serum Institute, Adar Poonawalla, também apelou a que fossem levantadas quaisquer barreiras à exportação para a Índia de matérias-primas necessárias ao fabrico das vacinas. Os EUA já anunciaram que vão fornecer os materiais e a Alemanha e o Reino Unido também apoiam esta solução.
A Índia foi uma das primeiras defensoras da suspensão dos direitos de propriedade intelectual das vacinas, junto da Organização Mundial do Comércio. Este mês, mais de 70 antigos líderes mundiais e uma centena de laureados com o Nobel apelaram ao presidente Biden para apoiar a iniciativa.
Há um mês, as autoridades indianas consideravam que o pior da pandemia já tinha passado, o que contribuiu para as acusações de falta de preparação que, agora, se fazem ouvir.
Além da nova variante, e da dificuldade de monitorizar o genoma do vírus no país, os comícios políticos no âmbito das eleições para as assembleias legislativas e as celebrações religiosas, como o importante festival Hindu Khumba Mela, também estarão a contribuir para a disseminação do vírus, visto que o distanciamento físico e a utilização de máscara não são respeitados.
Recentemente, a Índia bateu o recorde mundial de casos diários com 350 mil infeções registadas em 24 horas. O número de mortos tem ultrapassado as duas mil vítimas diárias, mas estima-se que possa chegar às 4 500 no próximo mês.
Enquanto os hospitais se debatem com a tragédia da falta de oxigénio, os crematórios enfrentam o drama do funcionamento ininterrupto.