“O que constatámos é que há um aumento considerável de pacientes diagnosticados com diabetes”, assegura Mihail Zilbermint, conceituado endocrinologista no Hospital Suburban em Bethesda, nos EUA, e professor na John Hopkins University School of Medicine – e mais que habituado a tratar a diabetes. Afinal, é ele quem dirige a equipa especializada para cuidar de doentes com aquela perturbação metabólica. E o que diz agora, citado pelo The Washington Post, é que, como o hospital tem admitido um número crescente de pacientes com Covid-19, a quantidade de doentes que aparecem no seu serviço também se multiplicou. “Antigamente, tínhamos no máximo 18 pacientes por dia. Agora, estamos a cuidar de perto de 30.”
A proporção revela-se ainda maior quando se sabe que muitos daqueles doentes não tinham antecedentes de diabetes. E se, alguns dos que atingiram níveis de glicémia muito elevada enquanto combatiam a infeção voltaram depois ao normal, quando saíram do hospital, outros foram para casa com um diagnóstico de diabetes crónica. “Daí estarmos a dizer que houve definitivamente um aumento no número de diagnósticos de diabetes por causa da Covid-19″, sublinha o especialista.
Não é o primeiro a fazer esta associação – aliás, a lista de problemas de saúde associados à Covid-19 incluí perturbações neurológicas, danos cardíacos e renais. E há cada vez mais investigadores convencidos de que a diabetes adquirida pode ser em breve associada a essas complicações. O pior? Esta associação pode dar-se tanto nos casos do Tipo 1, em que o pâncreas deixa subitamente de funcionar, como do Tipo 2, em que o organismo não responde à insulina como devia (a chamada “resistência à insulina”) e também não produz insulina em quantidade suficiente. Os cientistas só não sabem bem se a Covid-19 está a apressar o desenvolvimento destes problemas ou a causá-los – ou mesmo ambos.
Os cientistas só não sabem bem se a Covid-19 está a apressar o desenvolvimento destes problemas ou a causá-los – ou mesmo ambos.
Casos-surpresa
Logo em janeiro de 202, os médicos em Wuhan, a cidade da China onde surgiu oficialmente este coronavírus, notaram que havia níveis elevados de açúcar no sangue em doentes com Covid-19. Pouco depois, em Itália, outro país com um papel fundamental no alastramento da epidemia, os médicos começavam a perguntar-se se não estaríamos perante um crescimento anormal de diagnósticos de diabetes, dada a associação já observada anteriormente, entre infeções virais deste tipo e o início da diabetes.
Nessa altura, após a epidemia de SARS de 2003, os especialistas chineses identificaram cerca de 40 pacientes sem historial da doença e que a tinham desenvolvido, numa fase aguda, nos dias seguintes à hospitalização com SARS. Em praticamente todos, o nível de açúcar no sangue tinha caído quando tiveram alta, e apenas dois ainda mantinham diabetes ao fim de dois anos. E também encontraram evidências de que aquele coronavírus era capaz de atacar as células beta produtoras de insulina no pâncreas.
Mas um ano após o início da pandemia de Covid-19, o alcance desta relação perigosa ainda está longe de desvendado. A baralhar as contas, muitos dos que desenvolvem diabetes durante ou após a Covid-19 já têm fatores de risco, como a obesidade ou história familiar. Níveis elevados de glucose no sangue são igualmente comuns entre as pessoas que tomam dexametasona, um esteroide de primeira linha usado contra a Covid-19. A grande questão é que também ocorreram muitos casos em doentes sem fatores de risco conhecidos. E alguns casos desenvolveram-se meses após o organismo ter eliminado o vírus.
John Kunkel, um executivo bancário de 47 anos, em Evening Shade, Ark., foi um dos chamados casos-surpresa. Conta o The Washington Post que foi hospitalizado com Covid-19 no início de julho. De regresso a casa, durante uma visita de acompanhamento do seu médico, soube que tinha níveis perigosamente elevados de glicose no sangue e foi readmitido. E foi diagnosticado com diabetes tipo 2. “Fiquei muito impressionado porque não tinha quaisquer problemas de saúde antes”, confessou ao diário americano. Desde que foi infetado, já fez cinco visitas às urgências e foi sujeito a três internamentos hospitalares. Com tantos problemas de saúde, não conseguiu voltar ao trabalho e perdeu o emprego. “Será que vou recuperar a minha vida?”, questiona-se. Mas a resposta que mais tem recebido é “Ninguém sabe”.
Efeito direto?
Os números a uma escala maior não são mais animadores. Segundo uma análise global, publicada no final de 2020 na revista Diabetes, Obesidade e Metabolismo, um grupo de investigadores analisou ao detalhe os mais diversos relatos de hiperglicemia descontrolada, ou de glicemia elevada, em mais de 3 700 pacientes de oito estudos. Embora aqueles diagnósticos pudessem ser o resultado de uma resposta já observada em doenças desta gravidade, os autores foram mais longe, insistindo que “um efeito direto da Covid-19″ deve também “ser considerado” – e isto por causa das doses excecionalmente elevadas de insulina que os diabéticos infetados geralmente necessitam e pelas complicações perigosas que desenvolvem.
É verdade que ainda não compreendem exatamente o mecanismo que a doença usa para desencadear a diabetes – nem como avaliar se o caso é temporário ou pode tornar-se permanente. Ou se terá gerado um novo tipo de diabetes. Oiça-se então o que diz Francesco Rubino, professor de cirurgia da diabetes no King’s College, em Londres, no Reino Unido, outro especialista convencido de que existe uma ligação subjacente entre as duas doenças. Foi ele que no verão passado lançou a iniciativa da avaliação dos pacientes com diabetes associada à Covid-19. Mal a notícia foi dada a conhecer, por um editorial do New England Journal of Medicine, mais de 350 instituições de todo o mundo responderam, mostrando disponibilidade para colaborar no projeto, uma base de dados que continua a funcionar. “Precisamos de estudar mais o que se passa. Mas é cada vez mais incontornável que temos um problema real com a Covid-19 e a diabetes”, sustenta.
A agravar o cenário, emerge ainda outra grande questão: é que alguns dos casos comunicados à sua base de dados não se enquadram no perfil de habitual da diabetes Tipo 1 nem Tipo 2. Ou seja, normalmente, um paciente com um tipo de diabetes irá experimentar complicações específicas. Mas nos doentes com Covid-19, essa distinção é mais difícil de fazer. Ou como acredita Rubino, “parece haver uma forma híbrida que ainda não compreendemos” – daí estar já a aproveitar a divulgação da notícia para angariar mais colaboradores do projeto que permita conhecer melhor o mecanismo da Covid-19 que poderá estar a incentivar a diabetes.