Os avisos foram conhecidos na véspera de começar o plano de vacinação na Europa, ainda em dezembro: segundo revelavam relatórios da Covax, a iniciativa global de distribuição justa de futuras vacinas contra a covid-19 lançada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a que a Reuters teve acesso, a distribuição de vacinas para frear a pandemia nos países mais pobres poderia deixar milhões de pessoas sem acesso à imunização até 20204. Segundo os responsáveis do plano, as causas são conhecidas – desde a falta de financiamento aos riscos associados ao condicionamento das vacinas. Tudo junto poderia mesmo inviabilizar a distribuição nos países mais pobres.
Agora, o retrato da situação feito por Tim Ford, um investigador em saúde global, que realizou um grande número de estudos sobre as condições da água e do saneamento em locais onde as cadeias de abastecimento não chegam – como certas zonas rurais no Haiti – não deixa margem para dúvidas: a eficácia do processo requer uma cadeia de fornecimento complexa, que envolve congeladores e métodos de transporte que integram o controlo da temperatura. É por isso que, revela o especialista, citado pelo El País, se está já desenvolver vacinas que não requerem o “pesadelo logístico e económico” em que se tornou a distribuição em cadeia de frio.
O que fazer em locais onde não há estradas ou eletricidade
Segundo recorda Tim Ford, que é também o presidente do Departamento de Ciências da Saúde Ambiental e Diretor do Instituto para a Saúde Global da Universidade do Massachussets, nas regiões mais pobres, em áreas remotas do mundo, ou em locais onde a temperatura média diurna é muito alta e escasseia o acesso à eletricidade, as condições para manter as vacinas a baixas temperaturas não estão claramente presentes. Nestes locais, frisa, “pode nem sequer haver estradas (quanto mais aeroportos). E mesmo quando existem estradas, estas podem ser impraticáveis durante certos períodos do ano, ou inacessíveis por razões políticas ou de instabilidade armada.”
Ora, prossegue Tim Ford, se as vacinas agora a ser distribuídas – como a da Pfizer ou da Moderna – devem ser preservadas a temperaturas muito baixas, isso também quer dizer que “apenas os países mais ricos têm recursos para implementar uma cadeia de frio robusta”. Ou seja, isso significa que as grandes faixas da população mundial não terão tão cedo uma vacina contra a Covid-19.
Vacinas à temperatura ambiente?
A esperança reside então em alterar o processo de conservação – e é por isso que, revela, já se está a tentar desenvolver vacinas que não requeiram temperaturas de armazenamento tão baixas. Algumas empresas, incluindo a AstraZeneca e a Johnson & Johnson, estão apostadas em adaptar o processo à refrigeração convencional, sem recorrer a temperaturas negativas – e as suas vacinas deverão chegar ao mercado global nos próximos dois meses, expandindo assim o número de pessoas que podem ser imunizadas. As duas empresas estão também a colaborar com a COVAX, de forma a promover a aquisição conjunta e distribuição equitativa de vacinas a todos os países – independentemente do nível de rendimentos. Em meados de dezembro, 92 países das zonas mais pobres do globo tinham já aderido ao programa.
Uma das opções é ir além da refrigeração convencional. É que, apesar desta já significar uma melhoria das condições de acesso em relação ao armazenamento em congeladores, para chegarem às regiões mais remotas, o ideal era as vacinas poderem ser conservadas à temperatura ambiente. É por isso que os investigadores estão já a trabalhar no desenvolvimento de vacinas termorreguláveis que não exigem refrigeração. A técnica, explica Tim Ford, tem sido utilizada com sucesso há décadas – é o caso das vacinas liofilizadas ( ou desidratadas), mas também da que desenvolvida em 1955 contra a varíola, e “é mérito seu que a doença tenha sido erradicada”.
Assim, entre os métodos agora a ser testados e forma a armazenar de forma estável as vacinas contra o coronavírus, está a secagem por contato com o ar, recorrendo a películas de açúcar, e com outros agentes estabilizadores. Alguns investigadores, adianta ainda o especialista, estão a trabalhar em formulações líquidas estáveis, já utilizadas para certas estirpes de vírus vivos atenuados da gripe, que poderão evitar o recurso ao processo de secagem do ar – nem sempre possível em países rendimentos muito baixos por ser muito dispendioso.
A única esperança para certos lugares do mundo
Neste momento, trata-se em grande parte ainda de investigação básica, mas os progressos nesta área seriam de grande ajuda para satisfazer as necessidades de saúde global. Até à data, os esforços considerados mais promissores para desenvolver vacinas à temperatura ambiente têm vindo da Ásia. Na China, um grupo de cientistas clama já ter desenvolvido um método para envolver uma vacina de mRNA (RNA mensageiro) em nanopartículas lípídicas, um sistema alternativo de encapsulação de princípios ativos desenvolvido no início dos anos 1990, que conserva à temperatura ambiente. Na Índia, um outro grupo de cientistas está a desenvolver um fragmento de proteína que consiga resistir a temperaturas mais elevadas.
Mas não só. Também no Reino Unido, acrescenta o mesmo Tim Ford, um grupo de investigação começou recentemente a colaborar no desenvolvimento de uma vacina à base de polímeros, em dose sólida e sem agulhas. “Dadas as limitações das cadeias de frio, há uma série de obrigações morais, éticas e de saúde pública que requerem investimento em vacinas que possam ser mais facilmente distribuídas”, sublinha aquele investigador – rematando que “para muitas pessoas em muitos lugares do mundo, isto representa a sua única esperança de serem vacinadas.”