Vista deste final de 2020, numa altura em que se já se iniciou aquela que é considerada a maior campanha de vacinação da história, a história de Katalin Karikó impressiona – pela resiliência. A mulher que é hoje uma das cientistas mais influentes do planeta nasceu numa pequena cidade da Hungria, a cem quilómetros de Budapeste, numa casa sem água corrente nem eletricidade e num país onde nada era facilitado. Durante os anos 1990, já radicada nos EUA, propôs aqui e ali que se desenvolvessem os mais diversos tratamentos com base na molécula RNA, mas nunca foi bem-sucedida nos seus pedidos de financiamento.
Até que em 2010 tudo mudou – e três anos depois, Katalin seria contratada pela BioNTech, da qual hoje é vice-presidente. As vacinas entretanto desenvolvidas demonstraram ter uma eficácia de pelo menos 94 por cento. No momento em que foi vacinada, assegurou: “Estas vacinas vão tirar-nos desta pandemia. No verão, provavelmente já poderemos voltar à vida normal”.
Anos sem financiamento
Entrevistada pelo El País a partir da sua casa nos arredores de Filadélfia, nos EUA, Katalin Karikó, 65 anos, recorda que era uma menina feliz na sua Hungria natal. “O meu pai tinha um talho e eu gostava de o ver trabalhar. Gostava de observar as vísceras e os corações dos animais. Às vezes penso se a minha veia científica não terá vindo daí…”. Estudou biologia ainda na Hungria, mas em 1985 conseguiu ir fazer um doutoramento nos EUA e nunca mais voltou. Nos anos que se seguiram, ninguém apoiou a sua ideia de desenvolver medicamentos e afins com base na molécula de RNA. “Recebia carta de rejeição atrás de carta de rejeição”, recorda. Eram os anos do triunfo da terapia genética, que se baseava em mudar o DNA de forma permanente para corrigir doenças – uma visão que só começou a ser desvalorizada quando se demonstrou que pode gerar mutações letais.
Outros cientistas que apoiavam a ideia de desenvolver vacinas de RNA bateram no mesmo muro de Katalin Karikó. “Pensava-se que era uma loucura, que não funcionaria”, recorda ao mesmo diário espanhol Pierre Meulien, chefe da Iniciativa de Medicamentos Inovadores, financiada pela União Europeia. “Em 1993, a nossa equipa [no Instituto Nacional de Saúde francês] desenvolveu um método para usar o RNA mensageiro como terapia. Mas não conseguimos chegar à fase industrial, porque faltou financiamento”, conta.
Moderna, acrónimo de RNA modificado
Foi no início da década de 2000 que a estrelinha de Katalin começou a dar sinal. Já era investigadora da Universidade da Pensilvania quando se cruzou com Drew Weissman, um cientista recém-chegado que vinha da equipa de Anthony Fauci, o imunologista americano mais famoso do planeta. Weissman estava então dedicado a tentar desenvolver uma vacina contra o vírus da sida e desafiou Karikó a tentar fazê-lo.
Em 2005, descobriram que modificando uma única letra na sequência genética do RNA era possível evitar que houvesse inflamação. Os dois cientistas patentearam a técnica para criar RNA modificado, só que, entretanto, a Universidade da Pensilvânia decidiu vendê-la a uma empresa chamada empresa Cellscript. “Queriam fazer dinheiro depressa”, sublinha a cientista, sobre a operação que rendeu à universidade qualquer coisa como 245 mil euros.
Cinco anos depois, um outro grupo de investigação fundou uma empresa que comprou os direitos sobre as patentes de Karikó e Weissman. O seu nome, espante-se, é um acrónimo de RNA Modificado: Moderna. Em poucos anos, e sem muitos mais estudos científicos, receberam centenas de milhões de euros de capital privado – incluindo cerca de 350 mil euros da AstraZeneca. Tudo mais ao menos ao mesmo tempo em que outra pequena empresa alemã, fundada por dois cientistas de origem turca (a BioNTech) adquiriu várias das patentes de Karikó e Weissman.
Nobel a caminho?
Perante o bem sucedido desenvolvimento do processo, há alguns dias, Derrick Rossi, um dos fundadores da Moderna, disse mesmo à revista STAT que Karikó e Weissman deveriam receber o Nobel de Química. Kenneth Chien, biólogo cardiovascular do Instituto Karolinska, na Suécia, e também cofundador da Moderna, já concordou: “Todas as empresas que usam a tecnologia de RNA existem graças ao trabalho original de Karikó e Weissman.” Mas não só. Percorrendo o Twitter, o que não faltam são elogios ao seu trabalho e à sua persistência.
Mas no dia em que os dois se reuniram para receber a primeira dose da vacina da BioNTech, os seus pensamentos estavam na proteção que a mesma promove agora, um pouco por todo o mundo. “Se não fosse ilegal, já me teria mesmo vacinado no laboratório”, confessou a cientista, antes de adiantar: “A vacina começa a proteger apenas 10 dias depois da primeira dose, em cerca de 88,9%. Com a segunda dose, aumenta para 95 por cento.”
Katalin está, diga-se ainda, mesmo muito otimista: “estas vacinas vão tirar-nos de vez desta pandemia. Acredito que no verão provavelmente poderemos voltar à vida normal.” Só não lhe falem é no Nobel, algo que até a mãe lhe vaticinava, no tempo em que ainda vivia na Hungria. “Nos últimos 40 anos, não tive nenhuma recompensa pelo meu trabalho, nem mesmo uma palmadinha nas costas. Mas não preciso disso. Sei o que faço e sei que é importante.”