No telemóvel de José Fragata, 67 anos, diretor do serviço de cirurgia cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, há uma foto, recebida pelo Natal, que o enche de alegria. Na imagem, três dos seus doentes: um transplantado há 31 anos; outro, há 18, e outro operado há 26, quando tinha apenas 2 anos, e que estava prestes a ser pai. No currículo, o médico, professor e vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa, tem várias primeiras vezes, como a implantação de um coração artificial, em 2017.
Melhorámos muito em termos de saúde cardíaca nos últimos 20 anos. Se tivesse uma varinha de condão, o que mudaria para poder ainda fazer a diferença?
Melhorámos muito nos chamados cuidados agudos diferenciados. Hoje, morre-se muito menos de enfarte e menos de acidente vascular cerebral (AVC), embora estejamos menos bem nesta área. E porquê? Porque nos últimos 10/15 anos passou-se a poder intervir nos vasos. São situações em que normalmente um coágulo entope uma artéria e o tecido a jusante, alimentado por essa artéria, entra em sofrimento e morre. Pode ocorrer um enfarte do miocárdio ou um AVC, dependendo do vaso afetado. Quando acontece no coração, a pessoa pode morrer imediatamente, ter uma arritmia ou ficar com menos músculo cardíaco. No caso de um AVC, a pessoa pode também morrer ou, não morrendo, ficar limitada, com deficiências motoras.
O que determina a sobrevivência?
Tem muito que ver com a extensão do bloqueio ou a localização. O que se passou é que, hoje em dia, começamos a poder intervir, se for num período curto de tempo de duas, três horas após o problema, abrindo o vaso. E isto aborta o processo. Portanto, melhorou-se muito na mortalidade, com a chamada via verde coronária e também com a via verde para o AVC. Onde é que não estamos tão bem? Em princípio, naquilo que é menos tecnológico e até mais barato, que tem que ver com a prevenção, a vida saudável, detetar e combater a hipertensão, reduzir o consumo de sal, baixar as gorduras do sangue, não fumar nunca.
Mudar comportamentos, que acaba por ser o mais difícil…
Mudar comportamentos. Eu direi que uma das apostas tem de ser a tecnológica – chegar mais depressa ao hospital, ter acesso aos tratamentos. Mas há toda uma componente que tem que ver com a prevenção e, aí, talvez não estejamos tão bem.
Tendo em conta que os fatores de risco para o AVC são os mesmo que para o enfarte, porque não estamos tão bem no primeiro?
A via verde coronária começou mais cedo, está mais estabelecida e a rede está mais distribuída. Hoje em dia, a maior parte dos hospitais distritais faz intervenção cardiológica relativamente à parte do miocárdio. Relativamente à parte cerebral, estamos mais centrados nos grandes eixos centrais. Além disso, a exigência na rapidez da resposta é maior relativamente ao cérebro.
As melhorias têm sido contínuas?
Sim. Mas temos de ter em conta que estamos a viver muito mais e a doença dos vasos é uma doença degenerativa. Diz-se que “um homem é tão velho quanto as suas artérias são”. Nós acabamos por morrer devido ao envelhecimento das artérias, nos seus vários órgãos. Não podemos travar o envelhecimento, mas podemos manter-nos o mais saudáveis possível.
E o professor, com a sua vida, consegue cumprir as recomendações?
Não, não consigo. Estamos formatados para a vida sedentária. Na Universidade [Nova de Lisboa], por exemplo, estamos a fazer um esforço muito grande para que passemos a ter mais acesso a água, menos bebidas com açúcar e menos sal.
É a favor da penalização do consumo de alimentos menos saudáveis, através de impostos?
Há um valor muito importante na sociedade que é o da autonomia, o da liberdade. Mas há limites. Temos de perceber que a saúde coletiva pode ser um bem superior, temos de respeitar aquilo que cada um de nós despende em saúde, através dos impostos. É um tema delicado. Mas devíamos ser responsáveis individualmente e corresponsáveis no coletivo, pela saúde de cada um de nós. No outro dia, tinha um doente no serviço que ia ser operado a uma neoplasia do pulmão que, meia hora antes de ir para o bloco, estava a fumar um cigarro. Esta pessoa tem o direito de fumar este cigarro, nós temos a obrigação de operar a neoplasia. Mas não é moralmente certo. Em termos de valores, é difícil de sustentar. É um discurso de que os políticos fogem. Mas os governos estão a ir no sentido de reduzir verdadeiramente o consumo de sal e de açúcar, apesar de existirem interesses comerciais.
Num transplante, um doente que não fuma passa à frente de outro que fume?
Aí, as regras são mais restritas. Na transplantação de órgãos, como o pulmão ou o coração, há um problema ético associado. Quando transplantamos um órgão para uma pessoa e esse órgão é mal usado, privamos outra de o receber.
Então, está expresso nos critérios?
Absolutamente. Se um doente não nos dá garantias de aderir ao tratamento, tomar a medicação, nós não transplantamos. O dinheiro que gastamos com a saúde não é percebido. Mas um órgão, que se dá a uma pessoa para não se dar a outra, pesa mais. E relativamente à transplantação, a pessoa tem de merecer a sua oportunidade. É um problema ético entre a autonomia e a justiça distributiva; não posso dar tudo a um, privando os outros, ao lado, que também merecem.
Num transplante, salva-se uma vida. Mas por de trás deste salvamento, está a morte de outra pessoa, do dador. Esta questão está presente nas equipas médicas, nos doentes e seus familiares?
Não. Nós usamos órgãos de pessoas que iam morrer. O que se sente na transplantação é que o ganho é muito maior do que a perda. Aliás, a perda era inexorável. Algumas famílias – já transplantei bastantes crianças – sentem-se gratificadas porque a vida de um familiar seu pode continuar noutra pessoa. A transplantação é uma área de enorme generosidade. Das equipas, dos dadores e das suas famílias.
Qual o estado atual da transplantação?
Neste momento, vivemos uma crise, não só portuguesa, que é a escassez de órgãos para transplante. Desde sempre que há mais recetores do que dadores, pelo que, infelizmente, há sempre pessoas que morrem sem terem tido oportunidade de receber o órgão de que precisavam. Por isso é que a atribuição de órgãos tem de ser tão criteriosa. É um assunto que me faz refletir muito. O perfil dos dadores mudou. Quando eu comecei a transplantar, em 1986, os dadores vinham dos acidentes de viação. Era o normal. Lembro-me perfeitamente de transplantar corações cujos dadores eram jovens de 23, 24 anos que morriam em acidentes de moto. O País fez um esforço muito grande de prevenção rodoviária. E, hoje em dia, apesar de ainda se morrer de acidente na estrada, tornou-se muito menos frequente. Os carros melhoraram, há cintos de segurança. Portanto, os dadores que passámos a ter são dadores de doença. Pessoas da minha idade e mais velhas que morrem. A qualidade destes órgãos, nomeadamente do coração – que é um órgão que envelhece cedo –, é muito menor. Ora, nós fazíamos 40 a 50 transplantes cardíacos por ano e reduzimos para metade. As equipas estão muito preocupadas, porque diminuímos muito o número de corações disponíveis. Não sentimos esta falta no rim, nem no fígado, nem no pulmão. No entanto, relativamente ao pulmão e ao fígado, não temos alternativa. No caso do coração, há uma solução que são os corações artificiais ou os dispositivos de assistência mecânica ventricular. E nisso Portugal está muito atrasado.
Porquê?
Por questões financeiras. Na Alemanha, o número de dispositivos aplicados já ultrapassou o de transplantes cardíacos. A transplantação continua a ser a primeira indicação, é melhor e tem uma melhor relação custo-benefício. Mas, não havendo corações disponíveis, é preciso oferecer uma solução aos doentes. Ao todo, no País, implantamos uma meia dúzia de dispositivos. É ridículo!
Os corações artificiais custam muito mais do que um transplante?
São aparelhos que podem ser usados de duas formas, como ponte, até haver um órgão disponível, ou como solução definitiva. Os dispositivos custam cem mil euros. Um transplante não tem custos de órgão, mas tem os custos do hospital, dos medicamentos. Por exemplo, um transplante pulmonar custa 70 mil euros.
Não é uma diferença assim tão grande.
Pois não. Tudo isto tem que ver com a rigidez do sistema. Temos tantos programas específicos na Saúde, mas ainda não criámos um programa para esta área, apesar de eu já ter chamado a atenção dos diferentes governos. Precisamos de criar um programa para a insuficiência cardíaca, com financiamento próprio. Porque torna-se muito difícil convencer o diretor de um hospital a gastar 500 mil euros por ano com isto.
No futuro, poderemos dispensar a transplantação?
Eu penso que, com a melhoria dos dispositivos de assistência e a escassez dos dadores, caminharemos para recorrer mais aos aparelhos. Já há quem defenda que a assistência seja a primeira opção, e a transplantação, a segunda.
A cirurgia cardíaca mudou muito nestes últimos 30 anos?
Mudou, mudou imenso. Quando comecei, em Santa Cruz, há 30 anos, as taxas de sobrevivência eram de 10 a 15 por cento. Hoje, a mortalidade é de dois por cento. Mudou o conhecimento das doenças, as técnicas. Posso dizer que vivi uma época de glória da cirurgia cardíaca. A cirurgia deixou de ser tão baseada na arte para ser sobretudo técnica.