Até ao momento, as várias equipas de cientistas dedicadas à investigação de uma vacina contra o vírus SARS-CoV-2 têm realizado ensaios clínicos em zonas com elevada transmissão da doença.
Agora, um grupo de cientistas do Imperial College London pretende infetar deliberadamente voluntários com o vírus, no Reino Unido, para acelerar o processo de desenvolvimento de uma vacina.
O anúncio, feito esta semana, pôs a comunidade científica a discutir até que ponto será ético contagiar os participantes dos ensaios clínicos com uma doença para a qual não existe um tratamento estabelecido.
Por enquanto, o único medicamento aprovado contra a Covid-19 é o antiviral remdesivir – que já foi considerado uma deceção pela Organização Mundial de Saúde (OMS), devido ao seu fraco impacto na diminuição da mortalidade dos doentes.
“Quando existe um tratamento eficaz para a doença provocada pelo agente patogénico a que as pessoas são expostas, não se oferece qualquer dilema ético, porque os participantes são imediatamente tratados”, afirma o investigador principal do Instituto de Medicina Molecular (iMM) Miguel Prudêncio. “No caso do SARS- CoV-2, não existindo nenhum tratamento eficaz, a questão ética é completamente diferente”, nota.
Farmacêuticas como a AstraZeneca e a Moderna, que estão mais avançadas nos ensaios clínicos da vacina contra o coronavírus, têm realizado os testes em zonas onde a transmissão na comunidade é elevada.
“Num ambiente com elevada transmissibilidade, quem toma a vacina ou o placebo corre o mesmo risco de infeção do que quem não participa nos ensaios clínicos”, compara Miguel Prudêncio. Estando os participantes vacinados, assim como os não vacinados, naturalmente expostos à infeção, a percentagem de uns e de outros que contraírem a infeção permite aferir a eficácia da vacina.
Rapidez vs. Segurança
O investigador português lidera uma equipa que está a desenvolver uma vacina contra a malária – uma doença causada por um parasita que, em 2018, infetou 228 milhões de pessoas, levando à morte de cerca de 405 mil em todo o mundo.
Também nos ensaios clínicos que conduziu foram deliberadamente infetados voluntários com o parasita da malária, “mas havia forma de detetar a infeção numa fase precoce e a pessoa podia ser imediatamente tratada, antes mesmo do aparecimento de quaisquer sintomas da doença”, explica.
A vantagem deste contágio intencional é evidente: “acelera muito o processo de aferição da eficácia da vacina”, já que a infeção natural exige muito mais tempo até os participantes se infetarem acidentalmente com o vírus.
“Mas não se pode infetar deliberadamente alguém com SARS-CoV-2 de ânimo leve”, defende Miguel Prudêncio.
O investigador acredita que os cientistas tenham apresentado às autoridades britânicas, que serão responsáveis por consentir, ou não, esta linha de investigação, um plano estratégico, para minimizar ao máximo o risco para a saúde dos voluntários.
O número de pessoas vacinadas, por exemplo, deverá ser reduzido, rondando as dezenas, e, caso os ensaios sejam autorizados, serão selecionados grupos etários com uma menor probabilidade de desenvolverem doença grave. Ao mesmo tempo, “deverão ser utilizadas quantidades reduzidas do vírus, de forma a expor os participantes às doses mínimas indispensáveis para tirar conclusões científicas”, acrescenta.
Miguel Prudêncio sublinha que “quem participar no ensaio clínico será sempre voluntário e terá informação sobre todos os riscos”
“Também suponho que, não havendo um tratamento estabelecido, garantam uma intervenção terapêutica topo de gama, com o melhor que a ciência tiver para oferecer, junto dos infetados”, avança.
Miguel Prudêncio sublinha que, se o pedido dos investigadores do Imperial College for atendido, “quem participar no ensaio clínico será sempre voluntário e terá informação sobre todos os riscos que corre para decidir em consciência.” E insiste que “é importante não passar a ideia de que se vai infetar deliberadamente qualquer pessoa. Não, serão voluntários devidamente informados, e a sua participação no ensaio dependerá da assinatura de um consentimento informado”.
O investigador não duvida de que só será dada luz verde aos cientistas se as autoridades, como a Agência Reguladora da Saúde Britânica (MHRA), considerarem o risco para a saúde dos participantes baixo mas, confessa, tem dúvidas de que haja condições para avançar no momento presente.
No entanto, ressalva que não está na posse de todos os dados e que será sempre essencial fazer uma análise da relação entre os custos e os benefícios desta opção.
“Seria ótimo, se fosse possível, porque aceleraria a resposta mas, não sendo uma doença com um tratamento comprovadamente eficaz, e tendo em conta o que se sabe hoje, não me parece que seja possível minimizar o risco ao ponto de ser eticamente aceitável”, afirma. Mas não diz que seja impossível fazê-lo.