As divergências entre os especialistas e o Presidente da República, o primeiro-ministro e os vários dirigentes políticos presentes na reunião de avaliação da pandemia realizada ontem no Infarmed ficaram bem patentes. A questão de o aumento de infeções na região de Lisboa e Vale do Tejo estar relacionada com o maior número de testes e com comportamentos dos jovens foi posta em causa pelos técnicos, que chegaram mesmo a falar de já estarmos numa “segunda onda”. No fim da reunião, aos jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa garantiu, no entanto, que não há “descontrolo” da pandemia.
Filipe Froes, pneumologista, defende que toda a informação deve ser pública. “Certamente por vício profissional, não estou habituado a informação parcelar e, sobretudo, a versões diferentes e ajustadas consoante os interesses do momento e do local. Uma ameaça à escala global e que necessita do envolvimento de todos e, em particular, da população deve ser clara, transparente e coerente. Discursos diferentes provocam sentimentos diferentes e contraditórios que minam a coesão e a adesão.”
Mas estamos ou não perante uma “segunda onda” de infeções?
Pedro Simas, virologista, diz que não. “O número de casos “anda à volta dos 300” e “parece estar estável e controlado”. O especialista nota que o “facto de haver alguns surtos” não quer dizer que a situação esteja “descontrolada”.
Aliás, atesta que o tamanho da “segunda onda”, quando surgir, dependerá do comportamento das pessoas, ou seja, se as medidas de proteção (distanciamento físico, higiene das mãos, etiqueta respiratória e uso de máscara) são cumpridas. E só “será problemática se não forem protegidos os grupos de risco e o Sistema Nacional de Saúde entrar em rutura”.
O especialista refere que a “perceção em relação ao número de infeções tem de mudar”, pois, “até podiam ser mil casos, desde que os grupos de risco estejam protegidos e o SNS capacitado, estaríamos a construir imunidade de grupo”.
Nesta fase, sublinha, é importante a “capacidade de reação rápida para conter surtos localizados, identificando-os e implementando as medidas necessárias”, como testar os contactos desses infetados, para, repete a tónica, “proteger os grupos de risco”.
Esta “ondulaçãozinha”, como lhe chama, na linha que conta o número de infeções está controlada, mas admite que estamos todos a aprender. “Ainda não sabemos qual o nível de infeções necessárias para podermos dizer que passámos a linha vermelha e a situação está descontrolada. Estamos na fase de descoberta, e até esse número pode ir sendo alterado.”
Saraiva da Cunha, diretor do Serviço de Infecciologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, tem dúvidas sobre se estamos ou não na “segunda vaga”. “Não sei dizer ao certo, porque a curva epidemiológica não sugere com clareza uma segunda onda. O aumento não é exponencial”. Alerta, também, que o aumento de casos tem vários fatores por trás, como o “desconfinamento e maior número de testes”, e que só daqui a “uma ou duas semanas” se poderá tirar algumas conclusões.
O médico infecciologista não tem reservas quanto a voltar a “confinar pessoas onde for preciso”. Concorda que devem “ser impostas medidas mais restritivas em partes do País, sempre que necessário”, porque, explica, “já sabemos que uma parte da população não é sensível ao que se passa” e não cumpre as regras de proteção.
Já Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, corrobora a opinião de Pedro Simas. “Julgo que não se pode falar de uma segunda onda, até porque no caso de Lisboa, numa fase inicial houve um período com um maior número de casos, mas genericamente houve uma certa estabilização”. Apesar de os números mostrarem “de facto um aumento” em Lisboa, a situação está “estabilizada”.
Quanto ao nível Rt (número médio de casos secundários que resultam de um caso infetado) estar alto a nível nacional, o médico diz que isso acontece precisamente pelo aumento de casos em Lisboa e Vale do Tejo. “ O Rt tem a ver com o crescimento da doença, ou seja, nós podemos ter mil novos casos todos os dias, ao longo de três dias, que o Rt será 1. Enquanto que se tiver cinco casos num dia, dez no seguinte e vinte no terceiro, apesar dos números serem baixos, o R será de 2. Temos de analisar os vários indicadores. E em relação a esta matéria acho que é seguramente preocupante que tenhamos o número de casos a aumentar e que a região de Lisboa e Vale do Tejo seja aquela onde há uma maior incidência. Temos de intervir sobre essa situação, alocar recursos para controlar o problema.” Mexia defende que devem ser analisados outros fatores que influenciam a gravidade da situação, como o número de casos, a incidência, a dimensão das regiões onde se encontram, o tipo de casos, se dizem respeito à população mais ou menos idosa ou se estão relacionados com fatores de risco. E acrescenta que “estamos, agora, a tentar correr atrás do prejuízo”, já se sabia, diz, que, quando começasse o desconfinamento, “era plausível e provável que aumentasse a propagação da doença”. Tendo este conhecimento “devíamos ter já os recursos implementados”, mas só “agora é que andam a recrutar”.