O país e o mundo – ou, pelo menos, a Europa – começam a pensar em abrir de novo as portas e sair para a rua, como quem diz, pôr a economia a trabalhar, mas nem todos se sentem formosos e muito menos seguros… Aliás, as vozes a recomendar prudência têm-se sucedido, mais e mais, nos últimos dias. E não é só conversa de redes sociais ou de políticos da oposição – o próprio António Costa já falou em recuar nas medidas, caso seja necessário. Oiça-se, então, o discurso cauteloso de Christian Drosten, na entrevista exclusiva que deu ao The Guardian, para se compreender melhor o que está aqui em questão.
O especialista é diretor do Instituto de Virologia do Hospital Charité, em Berlim – e não é propriamente um novato em matéria de coronavírus. Afinal, foi um dos identificaram o vírus da SARS em 2003. Como chefe do laboratório de referência do instituto alemão de saúde pública, tornou-se o principal perito a que o governo de Merkel recorre quando tem de avançar com medidas para combater a pandemia. Perante a perspetiva de um regresso à normalidade tão cedo, Drosten não tem papas na língua e alerta para uma segunda onda mortal do vírus. Daí que, como ele descreve, seja visto como “o mau da fita que está a paralisar a economia.”

A poucos dias de a Alemanha, tal como parte de outros países europeus, se preparar para suspender o isolamento gradualmente, a sua explicação para este sentimento paradoxal é simples de explicar: “As pessoas estão a alegar que reagimos em excesso e há uma grande pressão política e económica para voltar ao normal. Mas a mim preocupa-me os efeitos desse abrir portas: receio que a taxa de infeção volte a subir novamente e que tenhamos de enfrentar um segundo surto”, afirma Drosten ao diário britânico.
As pessoas vêem que os hospitais, na Alemanha, não estão sobrecarregados e por isso não entendem por que razão as lojas têm de fechar. Só olham para o que acontece perto de si, e não para a situação dramática que se vive em Nova Iorque ou Espanha, por exemplo. Este é o que considero ser o paradoxo da prevenção, e que me tornou o mau da fita que está a prejudicar a economia
Christian drosten a explicar o que chamou de paradoxo da prevenção
Não que isto queira dizer em absoluto, sublinha ainda, que se conseguiria suprimir de vez o vírus em circulação – ou pelo menos, num grau considerável – caso se prolongasse o isolamento durante mais algumas semanas. “Há quem defenda isso, mas também não tenho tanta certeza disso. Há bolsas de maior prevalência de doentes, como são os lares de idosos, e aí certamente que levaria mais tempo, mesmo que este distanciamento social fosse prolongado.”
O discurso de Drosten torna-se bem menos contido quando se trata de uma segunda onda da epidemia. “Poderia ser contido? Sim, mas nunca apenas rastreando os contactos dos infetados. Já há muita evidência que quase metade das infeções ocorre antes de a pessoa desenvolver sintomas”, salienta, a propósito do papel maior dos assintomáticos. “Aí entraríamos numa corrida contra o tempo, só possível de vencer com a vigilância eletrónica”, nota ainda aquele especialista.
Já a imunidade, por que todos tanto ansiamos, Drosten lembra que é preciso que 60% a 70% da população tenha contato com o vírus. Os resultados já disponíveis na Europa indicam que estão muito abaixo disso – e ainda há muitos falsos positivos. Além disso, assinala ainda o virologista alemão, a imunidade da população pressupõe uma mistura completa das pessoas, e isso, sabemos, não é assim tão fácil de conseguir. “É mais provável que gere outras ondas de infeção”. Além disso, segue aquele especialista, não sabemos se outros vírus – como o da gripe comum, por exemplo, oferecem proteção a este. “Não sabemos, mas é possível”.
O problema maior, aliás, parece ser aquilo que ainda não sabemos sobre o vírus. À pergunta “todos os países devem testar toda a gente?”, Drosten responde: “Não tenho a certeza. Provavelmente o mais eficaz é dirigir esse esforço para os grupos mais vulneráveis…”. O que se sabe sobre a sazonalidade do vírus? “Não muito”. Podemos dizer com certeza que a pandemia começou na China “Acho que sim, mas não é certo que seja no mercado de alimentos de Wuhan… o mais certo é ter começado onde o animal – o hospedeiro intermediário – foi criado…” E nem quando diz “animal” é certo, segundo Drosten, que seja um pangolim…” Afinal, há tanta literatura sobre a presença deste tipo de vírus em gatos, tal como nos chamados cães-guaxinins, essa espécie originária do Japão, mais tarde introduzida na União Soviética, e que acabou por se tornar uma praga, por exemplo nos países nórdicos.
Se me dessem alguns milhares e acesso gratuito à China para encontrar a fonte do vírus, procuraria em lugares onde são criados animais como os cães-guaxinins
christian drosten, sobre o animal em que o vírus surgiu
Drosten nem sequer concorda que seja de alguma utilidade identificar o paciente zero – como passou a ser designado o primeiro humano a ser infetado com este Sars Cov-2. “Não vejo de que forma isso nos possa ajudar a evitar futuras pandemias. É até provável que outros coronavírus se tornem novamente uma ameaça.”
Sobre o que não o deixa dormir à noite, ameaças de morte e outras histórias
Já sobre a responsabilidade da atividade humana na propagação de coronavírus dos animais para as pessoas, Drosten é também muito cauteloso. “Os coronavírus tendem a trocar de hospedeiro quando há oportunidade, e nós criamos essas oportunidades por causa do uso não natural de animais – o gado. Esses animais de criação são expostos à vida selvagem, ao mesmo tempo mantidos em grandes grupos que podem amplificar o vírus. E, depois, nós, seres humanos, temos contato imenso com eles – por exemplo, através do consumo de carne. E isso é certamente uma possível trajetória de emergência para os coronavírus.”
Perante isto tudo, que certezas podemos ter sobre o futuro, quando sempre se pensou que a gripe é que representava o maior risco de pandemia? “Sim, mas agora não podemos descartar outra pandemia de coronavírus. Lembremo-nos que, após o primeiro surto do Ébola, em 1976, as pessoas julgaram que ele nunca mais voltaria. Levou menos de 20 anos a fazê-lo”.
Uma confissão mais intimista, mas também mais assustadora, remata a entrevista de Drosten – sobre o que o mantém acordado à noite. “As pessoas vêem que os hospitais, na Alemanha, não estão sobrecarregados e por isso não entendem por que razão as lojas têm de fechar. Só olham para o que acontece perto de si, e não para a situação dramática que se vive em Nova Iorque ou Espanha, por exemplo. Este é o que considero ser o paradoxo da prevenção, e que me tornou o mau da fita que está a prejudicar a economia. Recebo até ameaças de morte, além de emails de pessoas que dizem ter três filhos e que estão preocupados é com o seu futuro. A verdade é que, mesmo que não pareça, são esses que me mantêm acordado à noite.”