No último dia de 2019, a China alertava a Organização Mundial da Saúde para a existência de vários casos de uma pneumonia fora do comum em Wuhan, uma cidade portuária com 11 milhões de habitantes na província central de Hubei. Até àquela data esse era um vírus desconhecido e ninguém imaginava a sua dimensão, nem a forma rápida de propagação. O que um recente estudo vem agora explicar é que o novo coronavírus que causa a Covid-19 pode ter-se espalhado, silenciosamente, entre os humanos ao longo de vários anos ou mesmo décadas, muito antes do início desta pandemia.
Uma equipa da qual fazem parte alguns dos principais “caçadores” mundiais de vírus, provenientes dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Austrália, examinou uma série de dados divulgados por cientistas de vários países à procura de pistas sobre o passado evolutivo do vírus e descobriram que este poderia ter passado de um animal para um humano muito antes da primeira deteção na China, a 31 de dezembro passado.
Apesar de poderem existir outras possibilidades, os cientistas concluíram que o novo coronavírus carregava uma mutação única que não foi encontrada noutros suspeitos animais hospedeiros, mas provavelmente ocorreu durante infeções repetidas em pequenos grupos de pessoas.
A investigação conduzida por Kristian Andersen do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia, Andrew Rambaut da Universidade de Edimburgo, Ian Lipkin da Universidade de Columbia, Edward Holmes da Universidade de Sydney e Robert Garry da Universidade de Tulane foi publicado na revista científica Nature Medicine a 17 de março.
“É possível que um agente do SARS-CoV-2 tenha saltado entre seres humanos, adquirindo [novos genomas] através da adaptação durante a transmissão homem-a-homem não detetada”, escreve a equipa de investigadores no estudo. “Uma vez adquiridas, essas adaptações permitiriam que a pandemia se propagasse e produzisse um conjunto suficientemente elevado de casos”.
O imunologista Kristian Andersen explica que ao comparar os dados disponíveis da sequência do genoma para estirpes conhecidas de coronavírus, pode-se determinar com certeza que o SARS-CoV-2 teve origem através de processos naturais.
Esta seleção natural ocorreu num hospedeiro animal antes que o vírus fosse transmitido aos seres humanos. A equipa explica ainda que, embora amostras de coronavírus em morcegos e pangolins tenham mostrado genomas semelhantes, nenhum deles se encaixa, por enquanto, na perfeição. “Embora não tenha sido identificado nenhum coronavírus animal que seja suficientemente semelhante para ter atuado como progenitor direto do SARS-CoV-2, a diversidade de coronavírus em morcegos e outras espécies é uma amostra pouco relevante”, acrescentam os cientistas.
Mas, existe um segundo cenário em que o novo coronavírus “passou de animais para humanos antes de se tornar capaz de causar doenças humanas”, explica Francis Collins, diretor do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, no site da instituição.
“As descobertas reduzem significativamente a possibilidade do vírus ter origem laboratorial”, afirma Francis Collins. “Como resultado gradual de mudanças evolutivas ao longo de anos ou talvez décadas, o vírus acabou por adquirir a capacidade de se espalhar de humano para humano e causar doenças graves, muitas vezes com risco de vida associado”, acrescenta.