Marta D’Orey é um caso raro. De força, de resiliência e de entusiasmo pela vida, mesmo quando a vida teimou em fugir-lhe. Teve uma gripe A que a deixou com uma insuficiência respiratória e asma grave e que levou ao diagnóstico de uma doença crónica rara que se chama bronquiolite obliterante pós- infecciosa. Contou a sua história na VISÃO há três anos. Voltámos para saber dela mais tarde. Hoje, num apelo sentido, descreve o que podemos e devemos fazer perante a ameça do Covid-19, com base na experiência pessoal de quem sente na pele o que é viver com uma doença crónica respiratória.
Eu não fazia ideia, do que estava para vir, até ao momento em que chegou: uma gripe forte e feia, o corpo em colapso e a mente focada em manter o filme a rolar, mesmo que o enredo tivesse critérios para óscar de melhor drama.
E o meu mundo rodopiou numa translação desordenada, enquanto o vosso continuava a passear sereno à volta do sol. Aprendi uma nova realidade da pior maneira: A vivê-la na primeira pessoa. Despertou numa pontada aguda e instalou-se numa agonia crônica de respirar um ar afogado, sufocado, abafado. Da noite, para o segundo, a história virou a página e tornou-se outra.
Quem me vê de vista, só julga o livro pela capa, mas quem me lê por dentro, tem papel crucial no que conto por ainda cá estar. E, por isso, sabe o que é sentir o imprevisto no bater do meu coração, as picadas de agulha em cada poro da minha pele, e o emaranhado de fios entrelaçados a aprisionar o corpo à máquina.
Vocês não fazem ideia. Não têm como. E eu, também pouco mais sei, do que aquilo que vi, de olhos semiabertos, quando fingi dormir, ou do que o que ouvi, quando a porta ficou aberta numa brecha e deixou escapar sussurros.
Mas posso comprovar que houve dias em que a minha mãe engoliu o choro em soluços até chegar a noite para a esconder em segredo no escuro, e houve horas em que o meu pai amolgou a exaustão em dores de cabeça, a ver vida a andar para trás, por não ver a minha ir para a frente. Os meus irmãos diziam ter saudades minhas, e jantavam lasanha congelada dia sim, dia sim, sem reclamar a falta de brio na ementa. Mas um desligava a videochamada na cara por não gostar de me ver com tubos enfiados no nariz, e a outra quase que preferia estudar físico-química, a ir ao hospital visitar-me, onde me sabia confinada a uma cama, que não a minha, no quarto ao lado do dela.
Os amigos iam e vinham, em debandada, aos molhos, a fazer fila à porta. Encaixavam-me nos intervalos apertados para o almoço, e esticavam as pausas no estudo para me ver meia hora, e arranjar tempo para me comprar um pacotes de pipocas.
O difícil que não devia ser, esperar do outro lado da porta a ganhar coragem para a passar, mesmo face ao medo de não me encontrar na pessoa que antes conheciam, agora presa por um fio ao mundo, e prisioneira de um espaço com pouco espaço para os receber. Eles de roupa, eu de pijama; eu sem saber as horas, e sem ter a certeza das com que podia contar, e eles com horário de visita cerrado mesmo a tempo do jantar combinado a seguir. Todos sem saber bem o que dizer, sem que ninguém se conseguisse olhar de frente, com receio que o olhar revelasse o que não era falado.
Sabem lá vocês o que se passava ali dentro… Médicos com hora de saída sem irem a lado nenhum, à espera, mais em pé do que sentados, que eu agarrasse a corda bamba e voltasse ao poiso. Eles que faziam de tudo, sem saber fazer mais nada, com a filha de outros nas mãos, como quem adota de alma e coração, até o deixar preso. Enfermeiras a passar a noite toda a ver-me dormir, sem conseguirem descansar para fazer o mesmo, prontas a voar mundos para chegar até mim a tempo, no pânico eminente a anteceder a catástrofe que faziam questão de prevenir.
Quanto a mim? As picadas deixaram de doer. A dada altura, até o próprio corpo se esqueceu de pedir mais ar, porque se habituou a tê-lo em falta. A tosse treinou-se para meter um braço à frente e a asma já só soam a gatinhos a miar dentro do peito. As consultas passar a ser pretexto marcado para matar saudades e mostrar ser capaz de desfilar aqueles corredores pelo próprio pé. Mas há feridas medrosas, incertas, cansadas e frustradas que não sararam nunca mais. Não me esqueço da noite em que o meu médico se sentou ao meu lado na cama, para me dizer frente a frente, que havia hipótese de não poder pedir mais que o Natal seguinte; nem do dia em que abri os olhos para a vida depois de os ter fechado sem querer, e ver a médica que me tinha puxado de volta à força, esborratar de lágrimas a bata branca do colega de banco; nem do cheiro, aquele cheiro desinfetado do que é puro; e do que não fiz porque o “não” era sempre resposta; nem tão pouco daqueles momentos sérios demais para o meu gosto, reunidos entre pais, mães, e profissionais especialistas, para discutir o indiscutível e dizer o único tipo de verdades que se prefere que sejam mentira.
É a vida. A minha vida. Uma, em sete mil milhões. Percentagem ínfima perdida nos registos, exemplar pouco representativo da maioria, estatisticamente insignificante para marcar o sistema. Mas para mim, eu valho, e para os meus eu conto mais que muito, e a minha vida, é minha, mas também é vossa, porque quando nos aprendemos a cumprimentar, desaprendemos de nos despedir. Desde antes de existirmos, que vivemos sendo uns dos outros. Mas tudo ficou grande demais para a nossa consciência abarcar com o peso do mundo nos ombros, sem ameaçar afundar, e por isso esquecemo-nos que existe realidade no que é alheio, ou perdemos a noção, e não nos preocupámos em encontrá-la de novo, porque não nos faz falta o que achamos que não é nosso.
Por isso, conto-vos a experiência que não vos competiu experienciar, mas que podem, agora, fazer ideia do tanto que não sabiam, e que passam a saber:
É duro, angustiante, revoltante e nada agradável. Se não vos toca na pele, ao menos que vos toque por dentro, nos confins do coração, que acredito ainda manter aberta a válvula que deixa entrar sangue vindo de fora.
E mesmo que eu seja apenas uma em alguns (que de repente, se tornaram mais de mil), e que detalhar por mim adentro não valha assim tanto a pena, quando se fala à escala de um globo, ainda acredito que as palavras podem fazer a diferença, por descreverem o estranho que antes de conhecido, vos movia em nada, que não indiferença.
Mas mesmo que o mundo esteja a desabar e leve de arrasto a nossa segurança (e as prateleiras dos supermercados), na maioria das vezes, nunca nos caem pedregulhos no colo que nos paralisem ao chão. Por isso, às tantas cada um vai à sua vida; se é que alguma vez chegou a sair dela. Vão à vossa, mas tentem não ir a lado nenhum. Não se cansem de proteger quem, como eu, faz uso do vosso escudo, só porque estão cansados de estar em casa. Não se fartem de adotar medidas, como se adotassem a filha por quem os meus pais dariam a vida. Sejam amigos uns dos outros e descombinem o programa imperdível de sexta-feira, com a promessa de festejo digno de arromba, terminada a quarentena.
Por isso, quando ninguém estiver a ver, e vos parecer menos mau dar só mais uma voltinha, façam o favor de lembrar o que eu não esqueço e comportem-se como se fossem os maiores. Sim, os maiores. Tão grandes, que um simples gesto vosso seria alavanca para mudar o rumo da história.
Feito isto, fiquem onde estão. Se tiverem bichos carpinteiros, deem graças por não ser vírus de outro tipo, e levantem-se para lavar as mãos. No final do dia, só assim é que as terão verdadeiramente limpas.