Como se explica que queiramos viver para sempre, mas não envelhecer?
Viver é bom e gostamos de viver, mas de não envelhecer porque associamos isso a algo pouco agradável, que é o avançar da idade. Do ponto de vista individual, muitas vezes implica a prevalência de doenças crónicas (hipertensão, dores lombares) e degenerativas. Além disso, e embora o envelhecimento não seja uma doença, surgem quase sempre manifestações desse avançar da idade, muitas vezes associadas a perdas, como a mobilidade e a visão. Receamos, acima de tudo, não tanto a proximidade da morte, mas a possibilidade de ficarmos dependentes dos outros.
Mas isso é recente e é resultado dos avanços da medicina moderna. O que aconteceu ao sábio velhinho das sociedades antigas?
Também tendemos a idealizar isso: achamos que os mais velhos, antigamente, eram muitos valorizados do ponto de vista da comunidade e viviam de uma forma fantástica. Isso não acontecia com todos. Existiam alguns, mas eram uma raridade, porque era raro chegar-se a idades muito avançados, mas hoje já não é. Era um contexto muito especial: a sabedoria também era algo limitado, o conhecimento estava até de algum modo estagnado e passava de boca a orelha.
Quer dizer que foi esta conquista da idade que fez com que essas pessoas deixassem de ser valorizados?
Sim, ser raro é uma coisa boa, quer dizer que todos vivemos mais. A sociedade mudou. O envelhecer do ponto de vista individual tem uma série de associações que, claro, têm o seu fundamento. Por exemplo, recusamos as rugas, que têm a ver com a passagem do tempo. Agora, porque gostamos tanto do tempo e de estar cá muito tempo, mas procuramos esconder isso dos outros? Esta perspetiva tem também algumas características muito próprias do ponto de vista social. Traz outras perdas, com a reforma, por exemplo: perdemos valor social. Deixamos de ser entendidos em função do que fazemos e passa a ser em função do que fomos, de um olhar para trás, de uma sombra – e perdemos algum respeito dos outros. Perdemos, muitas vezes, a capacidade de nos realizarmos em outras atividades, além de encontrarmos uma série de entraves sociais. Começamos a olhar para trás, perdemos a rotina, o contacto com os outros, como os colegas de trabalho. E é quando tomamos noção que há um limite para a vida, e que não vamos viver para sempre.
Por que é que gosta de dizer o envelhecimento não é uma tragédia e sim uma oportunidade? E que deveríamos estar a festejar?
Digo isso muitas vezes porque temos de olhar para as causas do envelhecimento. As sociedades estão a envelhecer – nem todos os países estão iguais, mas a Europa é o berço do envelhecimento: é aqui que está a região do mundo mais grisalha. Penso que deveríamos estar a festejar o envelhecimento e não a evitá-lo porque as causas disso são as que todos nós nos devíamos orgulhar. Têm a ver com o avanço técnico-científico e a melhoria das condições de vida das populações. Não se envelhece por acaso. No início dos anos 1960, Portugal era o país menos envelhecido da Europa, mas pelos piores motivos: a escolaridade era baixíssima, a mortalidade infantil era a maior dos atuais 28 da UE. Ninguém quer abdicar destas conquistas, e ninguém quer voltar àquela sociedade, mesmo que fosse menos envelhecida. É o resultado de algo que aconteceu nas sociedades modernas. E alguns ainda não se convenceram do potencial valor que o envelhecimento traz consigo. Há um desfasamento entre a demografia e a forma como estamos a olhar para este percurso dos factos. Quando fiz a minha tese de doutoramento sobre envelhecimento, nos anos 1980, as pessoas não percebiam o que me interessava no tema. O panorama mudou radicalmente, mas já sabíamos que isto ia acontecer.
Desde essa altura que deixou de haver reposição de gerações…
Sim, e foi quando a esperança de vida aumentou e a mortalidade desceu. Portugal fez uma trajetória muito rápida, nestes 30 anos: hoje somos o mais envelhecido da Europa e também estamos nos primeiros lugares a nível mundial. O problema é que a mudança de discurso não foi tão significativa como ao nível dos factos: as pessoas continuam a dizer que se a fecundidade aumentar vamos deixar de envelhecer ou que o envelhecimento pode ser contrariado e isto não faz qualquer sentido. Continuamos a tentar criar uma realidade fictícia e não a pensarmos no que está a acontecer e a tirar o proveito real disso. Porque querem contrariar o envelhecimento? Não há razão, nem da saúde ou da segurança social, que justifique.
Há até esta expressão da “peste grisalha”…
É tenebrosa. Se não tivéssemos envelhecido era terrível. Os números dizem que o país, até 2080, tenderá a continuar a envelhecer (155 pessoas com 65 ou mais anos por cada 100 com menos de 15). Foi uma inversão que aconteceu em 2001. Pode ser mais ou menos acentuado, e isso passa muito pelo papel das migrações. Mas vai continuar. Vamos ser mais envelhecidos do que somos hoje, como hoje somos mais velhos do que no passado. Do ponto de vista demográfico, a história é esta e as causas são boas.
O que fazer perante estes dados?
Temos de repensar toda a situação. A menos que aconteça alguma catástrofe, estes dados são quase certos. Somos míopes quando dizemos que vamos parar de envelhecer. E estamos a olhar para o futuro como avaliávamos o mundo no passado. É como se andássemos de retrovisor. Herdámos uma série de racionais de uma sociedade passada que nada tem a ver com a de hoje e a do futuro. Uma delas, muito simples, tem a ver com as métricas: continuamos a medir o envelhecimento da mesma forma. Porque continuamos a classificar como idosos os que têm 65 anos? E porque é que só contamos os jovens até aos 15? Mas estes 65 de hoje têm alguma coisa a ver com os do passado? Nada. E os de 15? Também não. Há propostas que começam a ser desenvolvidas para alterar essas métricas.
Se o fizermos, passamos a ser muito mais jovens do que nos vemos hoje?
Sim, podemos passar a medir o envelhecimento em função do que podemos esperar viver depois de atingir a esperança média de vida. Utilizando esse raciocínio, que já fiz, passamos a ter muito mais jovens e muito menos idosos. É que a juventude também se prolongou – até a Organização Mundial de Saúde, passou a considerar o fim da adolescência nos 21 anos. Nos anos 1960, uma pessoa de 65 anos podia esperar ainda viver 13 anos. Tendo em conta a esperança média de vida hoje, é aos 72 que a pessoa tem ainda essa expectativa. Assim, se passarmos a contar os idosos a partir dos 72, a nossa visão da questão alterava-se e percebemos que não estamos tão envelhecidos como nos andam a apregoar. Não podemos continuar a usar os mesmos óculos, ou vemos tudo de forma desfocada.
E porque não abrimos mão desta organização?
Uma das razões tem a ver com o trabalho e com a organização do ciclo de vida. Desde o tempo da revolução industrial, que a força física contava muito para a produtividade, e balizavam-se as pessoas pela idade e associava-se a isso os conteúdos sociais. Era-se criança, depois havia a idade do trabalho e depois a reforma. E continuamos a funcionar assim, o que é pouco inteligente. A vida é um contínuo. Uma pessoa não adormece nova e ativa, e acorda com 70 e acabou. Isto faz algum sentido? Por outro lado, as sociedades hoje diferenciam-se pelo valor do conhecimento, é essa a riqueza das nações, já não é na força do trabalho e, que eu saiba, o conhecimento é algo cumulativo e não tem a ver com a idade. Já não há uma correlação, é o indivíduo que vale. A sociedade continua a desperdiçar pessoas ainda muito válidas, interessantes, e valiosas, do ponto de vista do conhecimento. Porque razão discriminamos uma pessoa com base na idade? Nem a nossa constituição, no seu artigo 13º, que é o do Princípio da Igualdade, e que estabelece que não se pode discriminar ninguém por causa da ascendência, sexo, raça, língua…Mas a idade não é para aqui chamada. Mas como é que se discrimina alguém por causa da idade e ninguém se indigna? Até porque continuo a perguntar-me se a reforma faz bem à saúde, pelo menos da forma como é vivida, e penso que não, porque há uma quebra nas rotinas, no convívio, na atividade mental, que não é benéfico para ninguém. Ainda por cima, há algo imposto.
Mas não é um tempo de libertação?
As pessoas não têm de continuar a fazer a mesma coisa, as pessoas já não têm de ter a mesma atividade ao longo da vida. Não se pode viver sem tempo para nada para depois chegar a um momento em que se livram de nós e nos dão o tempo todo. Uma pessoa fica a perguntar: e agora o que faço com isto? E os outros agora já não esperam nada de mim? Isto para a saúde, nos primeiros tempos até pode parecer ótimo, porque tem tempo para viajar, para ler, mas depois esgota-se. Hoje, há dados novos: as pessoas sabem que vão viver mais, por isso tempos de adaptar a nossa forma de viver a isso. Era importante perceber que não tem de terminar numa determinada idade. O ideal era um trabalho a tempo parcial e uma reforma a tempo parcial. E estudar ao longo da vida. São as três componentes da vida de alguém em que a idade é um contínuo e não algo feito por soluços. A forma como vivemos hoje acaba por gerar dramas terríveis. Também já sabemos que a produtividade não baixa por se trabalhar menos horas: nós trabalhamos imensas horas e não somos dos mais produtivos. Isso tem a ver com uma série de outros fatores: diminuir o número de horas de trabalho não significa diminuir a produtividade. Liberta antes a pessoa para outras funções, para a formação por exemplo. Para pessoas de qualquer nível, aprender é muito importante para todos. As pessoas têm de continuar a sentirem-se úteis.
Isso já explica melhor por que não queremos envelhecer…
Sem dúvida. Tem de ter presente, para o bem de todos, que é imprescindível repensar este modelo de sociedade. E quanto mais tarde o fizemos, pior. Será também a maneira de nos continuarmos a respeitar todos uns aos outros. Nos mais velhos, hoje em dia o respeito social é muito inferior ao devido porque estão impedidos de continuarem a sentir-se úteis. Vejo que se continua a reproduzir o modelo antigo, de se incentivar reformas antes de tempo – em vez de diminuir os tempos de trabalho, para que se prolongue a formação, e para que se possa continuar a alimentar a segurança social. Sou defensora do Estado Social, mas este para sobreviver precisa adaptar-se aos novos tempos. A culpa não é da demografia, a sociedade é que não se adaptou à demografia. Estamos a manter modelos da primeira revolução industrial, quando já estamos na quarta, que é esta era dos robôs, dos androides, da inteligência artificial…O outro era um modelo de uma sociedade que já não existe, em que vivemos menos.
Qual é então o grande desafio?
Temos de pensar que temos uma esperança de vida mais alargada à nossa frente e pensar o que vamos fazer com eles. É preciso termos noção de que não vamos deixar de envelhecer. É essencial uma mudança, em que o individual e o social têm de avançar em paralelo. E tem de se começar em pequeninos, para que saibam logo que vão viver de forma muito diferente do que vivem os seus avós. As cabeças têm de ser trabalhadas logo na escola, desde as idades mais tenras. Só se fala que a população está a envelhecer. Tem se se questionar isto e ensinar que a pessoa vale por si e não pelos rótulos que lhe atribuem, independentemente da idade que tem. Não acredito que seja uma mudança que se possa fazer por decreto, embora fosse simpático que a nossa constituição incluísse a idade, e tornasse inconstitucional uma série de coisas que estão a acontecer hoje, como a discriminação dos mais velhos. E faltam ainda incentivos claros a esta nova forma de organização. Há o exemplo daquele multimilionário mexicano, o Carlos Slim, que defendia 3 dias de trabalho por semana para os seus trabalhadores – e estes tinham mais tempo livre, e iam trabalhar cheios de motivação. Não é propriamente um aprendiz, foi durante alguns anos o homem mais rico do mundo durante algum tempo. Portugal, que já foi pioneiro em algumas áreas interessantes, como a descida da mortalidade infantil (somos um exemplo no mundo), também podia ser pioneiro nesta área. Temos de deixar de culpar o envelhecimento por tudo o que acontece, que isso é um discurso perigoso. É o resultado de algo. A demografia é o corpo da sociedade, e esse corpo mudou. Insistir em usar um fato que nos ficava bem quando tínhamos outro corpo é que é absurdo.