Devemos temer os químicos? A pergunta é pertinente e atual, uma vez que a quimiofobia – um receio exagerado relativamente a produtos químicos ou, num sentido mais lato, à química em geral – aparece disseminada em alguns segmentos da sociedade, em particular entre os adeptos de um estilo de vida “alternativo e natural”. Mas fará sentido uma dicotomia “químico versus natural”? Na sequência de informação veiculada na internet sobre o monóxido de di-hidrogénio (MDH), um produto químico com características algo assustadoras, várias petições têm circulado para que esta substância seja banida. Convidamo-lo a ler o que se segue e a decidir se assinaria a petição.
Os efeitos do MDH: é um componente da chuva ácida; contribui para o efeito de estufa; pode causar queimaduras; contribui para a erosão da paisagem natural; acelera a corrosão e ferrugem de alguns metais; diminui a eficiência dos travões dos carros; encontra-se em rios, lagos e até no gelo antártico; provoca a morte quando inalado; a baixas temperaturas, pode romper as células e tecidos de um organismo. O MDH é utilizado: como um poderoso solvente; em centrais nucleares; como retardador de incêndios; como aditivo de fast-food; em investigação animal; na tortura; em rituais de culto.
E você, assinava?
Muitas pessoas, depois de ouvirem falar deste químico e de lerem as informações acima apresentadas, decidiram assinar a petição, sem perceberem que o que estavam a pedir para proibir era… a água! A designação monóxido de di-hidrogénio significa que se trata de um composto químico com um átomo de oxigénio e dois átomos de hidrogénio, ou seja, a nossa conhecida H2O, água. Mas, como o texto utiliza um nome complicado e refere todas aquelas características negativas – e, ainda assim, verdadeiras –, as pessoas assumem que se trata de uma substância altamente perigosa e decidem assinar. Este exercício tem servido para alertar a população para a importância da literacia científica e de não nos deixarmos convencer facilmente por campanhas de medo em relação a produtos químicos. O que é interessante é que campanhas de medo idênticas circulam pela internet, como as relativas aos rastos de aviões e aos organismos geneticamente modificados.
Uma das principais fontes de confusão a propósito deste tema é a utilização corrente do termo “químico” como sinónimo de algo artificial ou sintetizado por humanos e, simultaneamente, a utilização do termo no sentido literal, que é o de um conjunto de átomos ou moléculas. Vamos ao primeiro caso. A pretensa separação entre artificial e natural resulta de uma visão que alega que as substâncias naturais são benéficas, enquanto as artificiais são prejudiciais. No entanto, a realidade é, naturalmente, bem mais complexa do que essa simplificação. Por um lado, recorremos a medicamentos sintetizados para nos tirarem as dores ou para nos baixarem a temperatura quando temos febre, o que é comummente aceite como benéfico. Há que ter noção, porém, de que, por outro lado, existem produtos ditos naturais (e que não deixam de ser químicos, como veremos já a seguir) que podem mesmo ser letais, como algumas espécies de cogumelos, bagas venenosas, plantas medicinais como a dedaleira, a ricina que se encontra na semente da mamona (de onde se obtém o óleo de rícino), ou a toxina botulínica (uma neurotoxina produzida por uma bactéria e da qual se obtém o botox). Assim se conclui que, relativamente à segurança, ou até mesmo utilidade, a mera distinção entre produtos naturais e artificiais não é suficiente para formar julgamentos informados.
A outra ideia comum é a de que os medicamentos à base de plantas são considerados tratamentos naturais por não conterem químicos no verdadeiro significado da palavra. Esta é uma ideia falsa, pois não há nada na natureza que não seja constituído por átomos ou moléculas, inevitavelmente químicas. Isto levanta uma questão importante: assumindo que certos tratamentos são naturais, as pessoas julgam que podem ser tomados indiscriminadamente, pois acham que não irão fazer-lhes mal. No entanto, essa atitude pode ter graves consequências para a saúde visto que, tal como os medicamentos, os produtos ditos naturais têm princípios ativos, isto é, substâncias químicas que provocam determinado efeito no organismo, e que em doses elevadas podem ser tóxicas. Além disso, esses produtos (medicamentos naturais e suplementos alimentares), por via das moléculas presentes na respetiva constituição, podem interagir com os medicamentos que estão a ser tomados, potenciando, minimizando ou até anulando o efeito do medicamento. A interação entre plantas e medicamentos é mais comum do que se pensa, pelo que qualquer tratamento natural deve ser comunicado ao médico, inclusive a ingestão regular de chás e infusões. Por exemplo, mulheres que recorrem à pílula anticoncecional e bebam chá de hipericão poderão vir a ter uma gravidez não planeada, porque a planta promove uma rápida eliminação do organismo do princípio ativo da pílula, diminuindo o seu efeito. E, ao contrário da imagem que se pretende alimentar, a ciência não está de costas voltadas para o estudo dos benefícios das plantas medicinais. O exemplo clássico é o da casca do salgueiro, conhecida desde a Antiguidade como analgésica e anti-inflamatória, mas que, em contrapartida, é muito prejudicial para o estômago. A investigação científica permitiu descobrir que o princípio ativo da planta – que se manifestava naquelas propriedades – era o ácido salicílico. O passo seguinte foi isolar esse composto, sintetizá-lo e adicionar um grupo químico, o acetil [O grupo acetil faz parte da constituição de produtos ditos “naturais” como o ácido acético, vulgo vinagre], dando origem a uma nova molécula, o ácido acetilsalicílico, que produz o mesmo efeito primário, mas efeitos secundários menores. E assim nasceu a aspirina – o primeiro nome comercial deste composto –, um dos medicamentos mais utilizados do mundo.
O DOSE FAZ O VENENO
A pergunta persiste: devemos temer os químicos no geral? A verdade é que a existência de substâncias químicas no solo, nos alimentos ou no nosso organismo, por si só, não é indicadora de perigo. O que interessa saber é qual a substância e qual a quantidade. Por outras palavras, o que faz o veneno é a dose. Isto é verdade para qualquer substância, quer estejamos a falar de produtos sintetizados ou de produtos naturais. O que normalmente, em termos informais, se considera tóxico ou venenoso são substâncias prejudiciais em doses muito baixas, mas a verdade é que qualquer substância tem a capacidade de ser prejudicial a partir de uma certa quantidade. Existem valores tabelados para a ingestão segura de determinados compostos. Apenas quando os valores ultrapassam esses limites é que existe risco de toxicidade para o nosso organismo. Abaixo desses valores, podem ser inofensivos ou até mesmo benéficos.
Exemplo disto, apesar de gerarem com frequência receios, são os aditivos alimentares, reconhecidos pela letra E seguida de um número de três algarismos, na lista de ingredientes de um alimento processado. Por vezes, surgem acompanhados do seu nome químico. Olhando para um exemplo, é normal que tenhamos dúvidas sobre o que estamos a consumir quando vemos “E 300 – ácido ascórbico”. Estranho, não é? Mas esse é o nome da vitamina C, que é adicionada às carnes para evitar que fiquem rançosas.
Eis alguns aditivos que é também capaz de reconhecer: E 150a – caramelo (corante); E 210 – ácido benzóico (presente nos arandos); E 260 – ácido acético ou vinagre; E 300 – ácido ascórbico ou vitamina C; E 306-309 – tocoferóis ou vitamina E; E 330 – ácido cítrico (presente nos citrinos, como o limão); E 440 – pectina (gelificante usado nas compotas).Os aditivos apresentam várias funções: podem ser corantes, conservantes, antioxidantes, espessantes, gelificantes, emulsionantes, estabilizadores ou edulcorantes. Ou seja, servem para dar cor, para conservar, para dar sabor ou para conferir textura aos produtos. Para serem aprovados, têm de ser submetidos a rigorosos testes científicos, a uma constante monitorização e a revisões periódicas com base em novas informações resultantes da investigação científica.
Não é de todo impossível que um aditivo que se pensava ser seguro possa, por exemplo, provocar efeitos adversos em algumas pessoas mais sensíveis, como reações alérgicas, por exemplo, mas muitos destes compostos são utilizados para garantir a segurança dos alimentos e evitar intoxicações alimentares, não servem apenas para tornar os produtos mais saborosos e apresentáveis. Portanto, existe também uma componente de risco-benefício a ser considerada. Curiosamente, o mero ato de cozinhar a comida pode gerar um sem-número de compostos químicos com efeitos desconhecidos na saúde. Por exemplo, a acrilamida é um composto que se forma a partir de alimentos ricos em amido – como a batata – quando cozinhados a elevadas temperaturas. Ainda não se sabe bem o seu efeito em humanos, mas existem evidências de que possa ser potencialmente cancerígeno e, como tal, recomendam-se cuidados na preparação e moderação do consumo de alimentos como as batatas fritas ou o pão demasiado torrado. Contudo, ninguém pensa proibir pura e simplesmente o consumo de batatas ou a confeção dos alimentos, dado que tal seria manifestamente um exemplo de alarmismo.
Aproveitando-se da narrativa simplista de que os produtos artificiais são, por inerência, mais perigosos, o mercado apresentou os produtos naturais como a solução para todos os receios e desconfianças. Mas os produtos naturais, vendidos como alternativas, não são necessariamente mais seguros. Desde produtos naturais nocivos a produtos que de natural nada têm, a oferta é variada.
NATURAL… MAS LETAL
A procura de curas naturais, principalmente para o cancro, levou à criação de um produto conhecido como laetrile, ou vitamina B17 – que, apesar do nome, não se trata de uma vitamina. Trata-se de uma forma semissintética da amigdalina, uma substância presente nas sementes e caroços de alguns frutos, como o pêssego, ou em algumas ervas. Pode ser administrado como injeção intravenosa, comprimidos, loções para a pele ou em meio líquido para clisteres. De entre estas possibilidades, a ingestão em comprimidos é a que apresenta mais riscos porque, ao longo do processo digestivo, as moléculas de amigdalina são degradadas, formando cianeto e podendo levar a intoxicações. Por ser um “produto natural”, as pessoas creem que a sua ingestão é benéfica e segura, mas, em grandes quantidades, verificam-se os mesmos efeitos secundários da ingestão de cianeto em doses muito baixas, como enjoos, dores de cabeça, tonturas, febre, tensão baixa ou danos no fígado. Os alimentos que contêm amigdalina são saudáveis porque têm pouca quantidade da substância, mas se tomar suplementos de amigdalina deve evitar-se o consumo desses alimentos, para não sujeitar o corpo a doses mais elevadas da substância.
Os primeiros registos de utilização da amigdalina para combate ao cancro remontam a 1845, na Rússia, mas o seu uso passou a ser mais generalizado na década de 1970, como parte de uma dieta especial, rica em vitaminas. E o que diz a ciência? Os primeiros testes com animais pareceram demonstrar uma desaceleração do desenvolvimento do cancro, mas estudos subsequentes não conseguiram replicar os mesmos resultados. Nas décadas de 1970 e 1980, foram realizados ensaios em humanos, mas esses também não mostraram resultados positivos. Uma revisão sistemática, publicada em 2011 pela Cochrane Library [organização que visa promover a tomada de decisões de saúde com base em estudos científicos], argumentava que os benefícios atribuídos à amigdalina não eram apoiados pelos ensaios clínicos e alertava para os riscos de envenenamento devido à sua ingestão. Devido aos riscos para a saúde, a sua venda está proibida nos EUA e na União Europeia. (…)
Em resumo: é impossível avaliar a segurança de um produto apenas pelo facto de ser de origem natural ou sintetizado pelo Homem; os produtos ditos naturais também contêm químicos; algumas substâncias podem ser benéficas ou prejudiciais dependendo da dose e da interação com outros compostos; e rotular produtos como “livres de químicos”… não passa de uma estratégia de marketing.
Este texto é um excerto editado do livro Não se Deixe Enganar.
(Artigo publicado na VISÃO 1286 de 26 de outubro)