As populações mundiais de vida selvagem caíram em mais de dois terços desde 1970 – uma tendência que não dá sinais de abrandar. Agora, o IPBES (Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos) identificou as cinco principais ameaças à biodiversidade terrestre: as alterações na utilização da terra e do mar; exploração direta dos recursos naturais; alterações climáticas; poluição; e invasão de espécies invasoras (por ordem decrescente de impacto). A Conferência das Nações Unidas sobre a Biodiversidade (CBD COP15), cuja primeira fase ocorreu na semana passada em Kunming, na China, deve lançar as bases para a elaboração de planos que travem estes perigos.
Alterações na utilização da terra e do mar
A forma como os humanos têm ocupado o território foi identificada como a maior causa da perda de biodiversidade que o planeta tem enfrentado nos últimos 50 anos. No total, três quartos de todo o ambiente terrestre e 66% do ambiente marinho foram alterados significativamente devido a ações humanas.
A maior destas alterações é a crescente expansão agrícola, com mais de um terço da superfície terrestre a ser utilizada para cultivo ou para criação de animais, à custa de florestas tropicais, zonas pantanosas ou pradarias, reporta o IPBES. A isto, junta-se o crescimento desmedido das áreas urbanas e das infra-estruturas necessárias ao crescimento da população.
Um exemplo concreto é o das grandes pradarias dos EUA, que continuam a ser destruídas para dar espaço a culturas de soja, milho e trigo, entre outras. Estima-se que a produção de culturas alimentares a nível mundial tenha aumentado 300% desde 1970, apesar dos impactos ambientais.
Apenas uma fração das pradarias originalmente existentes nos EUA se mantém atualmente, com uma área cada vez maior a ser reconvertida em plantações. De facto, muitas das áreas reconvertidas recentemente não são ótimas para a produção agrícola – com cerca de 70% a atingir rendimentos abaixo da média nacional, o que significa que muitos ecossistemas e habitats estão a ser destruídos com poucos benefícios para a produção.
Estas extensões de terra servem de habitat a diversas espécies, que têm sofrido com a destruição dos seus ecossistemas. A chamada região do “Prairie Pothole” (planícies pantanosas), que abarca partes do Iowa, Dakota, Montana e do sul do Canadá, é o lar de mais de 50% das espécies de aves aquáticas migratórias dos EUA, além de 96 espécies de aves canoras. A região também é o habitat da borboleta-monarca, uma espécie essencial para a polinização. Todas estas espécies foram afetadas pela reconversão das pradarias, que eliminou as suas fontes de alimento ou zonas de nidificação.
Tyler Lark, da Universidade de Wisconsin-Madison, estuda o fenómeno há anos. As suas investigações estimam que cerca de quatro milhões de hectares de pradaria tenham sido destruídos entre 2008 e 2016. “As nossas descobertas demonstram um padrão generalizado de invasão de áreas que são cada vez mais marginais para a produção, mas altamente significativas para a vida selvagem”, pode ler-se num estudo publicado na Nature Communications. Lark lamenta que, apesar da dimensão do fenómeno, que compara à desflorestação tropical, a destruição das pradarias “receba frequentemente muito menos atenção”.
Apesar de esta ser a maior causa do declínio da biodiversidade, há algumas pequenas ações que podemos tomar. Reduzir o desperdício alimentar e consumir menos carne são um começo. A indústria da carne é uma das mais insustentáveis: apesar de 77% das terras agrícolas serem utilizadas na produção de gado, apenas 17% do consumo calórico global provém de animais.
Exploração dos recursos naturais
O consumo dos recursos naturais está intimamente relacionada com a ocupação do território. A exploração do solo para produção agrícola e pecuária, a pesca intensiva, a extração de petróleo e carvão, o uso desordenado das reservas de água – têm contribuído para esgotar os recursos do planeta, quase ao ponto da insustentabilidade. Em particular, o IPBES realça a sobreexploração dos oceanos e recursos aquáticos.
“A atividade humana tem tido um grande e generalizado impacto nos oceanos. Esta inclui a exploração direta, em particular a sobreexploração, de peixes, moluscos e outros organismos, (…) e a alteração do uso da terra e do mar, incluindo o desenvolvimento costeiro para infra-estruturas e aquacultura”, pode ler-se num documento oficial.
As reservas de água subterrânea, e a sua constante exploração, são uma preocupação para muitos especialistas. “O problema da água subterrânea é que as pessoas não a veem e não entendem a sua fragilidade”, explica James Dalton, diretor do programa mundial da água na União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). “Estas reservas podem ser a maior – e muitas vezes a única – fonte de água em alguns habitats terrestres.”
Quase metade da população mundial depende dos aquíferos para consumo próprio, para não falar das quantidades enormes que são extraídas para apoiar as indústrias agrícola, mineira e outras. De acordo com especialistas, a extração de águas subterrâneas está a ser feita a um ritmo insustentável, e com consequências devastadoras para os ecossistemas aquáticos – os mais ameaçados em todo o mundo.
Um estudo de 2017, por exemplo, revelou que mais de 50 anos de extração de água do aquífero de Ogallala – um enorme lençol freático sob oito estados das Grandes Planícies dos EUA – tinham levado alguns rios a secar, e o colapso de grandes populações de peixes.
“A água subterrânea é lenta, porque tem de fluir através das rochas. Se extrairmos água hoje, isso terá impacto no fluxo de água talvez nos próximos cinco ou dez anos, ou nas próximas décadas”, explica Inge de Graaf, hidróloga da Universidade de Wageningen. De Graaf liderou um estudo que descobriu que entre 15% a 21% das bacias hidrográficas que bombeiam águas subterrâneas a nível global já ultrapassou o ponto da exploração sustentável, com mais 42% a 79% a correrem o mesmo risco até 2050.
“Se continuarmos a extrair água subterrânea nas próximas décadas como temos feito até agora, atingiremos um ponto crítico em regiões da Europa do Sul e Central – como Portugal, Espanha e Itália -, bem como nos países do Norte de África”, alerta.
Alterações climáticas
As mudanças no clima aparecem em terceiro lugar na lista, mas o seu impacto vai aumentar durante as próximas décadas. “A rápida alteração climática antropogénica do início do século XXI está intimamente ligada à saúde e ao funcionamento da biosfera”, pode ler-se numa publicação da Royal Society, que alerta para a intensificação das alterações climáticas e o seu impacto “dramático e inesperado” nos ecossistemas nos próximos anos.
Já se tornou claro que a conservação da biodiversidade e as alterações climáticas estão interligadas de diversas maneiras, e as soluções para os dois problemas não podem ser pensadas em separado.
É a opinião de Nathalie Pettorelli, investigadora na Sociedade Zoológica de Londres. “O nível de interligação entre as alterações climáticas e as crises de biodiversidade é elevado e não deve ser subestimado. Não se trata apenas do impacto das alterações climáticas sobre a biodiversidade; trata-se também da perda de biodiversidade que aprofunda a crise climática”, afirma.
Exemplo desse impacto são as cada vez mais frequentes ondas de calor – com temperaturas a atingir os 43 ºC em França, em 2019 e 48,8 ºC em Itália, no passado mês de agosto, a temperatura mais alta registada na Europa – e os incêndios que lhes estão associados. Eventos climáticos extremos como cheias, tempestades ou períodos intensos de seca estão a alterar profundamente o frágil equilíbrio dos ecossistemas. E, em última instância, a sua capacidade para nos suportar.
De facto, o último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) mostrou que ondas de calor extremas, que normalmente aconteceriam de 50 em 50 anos, já estão a acontecer a cada década, e provavelmente ocorrerão a cada cinco anos se o aquecimento global subir mais 1,5 ºC. A ação humana já aqueceu a atmosfera da Terra em mais 1 ºC, aproximando-se perigosamente do 1,5 ºC, o limite acordado no Acordo de Paris – o que poderá ter consequências catastróficas.
O relatório continua, dizendo que os efeitos no clima causados pela ação humana são “sem precedentes” e alguns mesmo “irreversíveis”, e já estão a afetar milhões de pessoas atualmente. Ondas de calor e chuvas fortes que levam a cheias tornaram-se mais intensas e frequentes desde 1950, afetando mais de 90% do mundo. Igualmente, a seca também está a aumentar em 90% das regiões, e o número de furacões e tempestades também tem vindo a aumentar desde os anos 70.
A subida do nível do mar, influenciada pelo derreter dos glaciares, é outra grande ameaça. Os cientistas estimam que, no final do século XXI, o nível do mar tenha aumentado em 28 a 100 centímetros, podendo chegar mesmo aos dois metros em 2150. Muitas cidades costeiras poderão ficar submersas, e o desaparecimento dos glaciares é crítico para o ambiente uma vez que estes, em conjunto com os oceanos, absorvem 96% do aquecimento global.
Estes efeitos já afetaram negativamente cerca de 47% mamíferos terrestres, e quase um quarto das espécies de aves, de acordo com o IPBES. Inúmeras espécies enfrentam o risco de extinção, caso o aquecimento global aumente para 2 ºC (5%) ou 4,3 ºC (16%).
Sveinung Rotevatn, ministro norueguês do Clima e do Ambiente, é peremptório quanto à questão. “Tornou-se claro que não podemos resolver [a crise da biodiversidade global e a crise climática] isoladamente – ou resolvemos ambas, ou nenhuma.”
Poluição
A poluição tem vindo a aumentar, com a poluição marinha a atingir números particularmente assustadores: aumentou dez vezes desde 1980, “afetando pelo menos 267 espécies, incluindo 86% das tartarugas marinhas, 44% das aves marinhas e 43% de mamíferos marinhos”, relata o IPBES – o que pode afetar os seres humanos através da cadeia alimentar.
A poluição atmosférica e terrestre também está a aumentar em algumas áreas, impulsionada pelas emissões de gases com efeito de estufa, resíduos urbanos e rurais e poluentes provenientes de atividades industriais, mineiras e agrícolas, entre outros.
Os especialistas alertam ainda para uma “ameaça invisível”: a poluição causada pelo azoto, um gás libertado pela indústria agrícola e pelos combustíveis fósseis. O azoto afeta atualmente cerca de 30 mil hectares de floresta na Escócia, cujos fungos e líquenes, altamente sensíveis às condições atmosféricas, morrem ao absorver o ar poluído.
Mas o problema não se circunscreve apenas à Escócia. O azoto é um dos principais causadores da chuva ácida, juntamente com o enxofre, que afeta florestas em todo o mundo. “A chuva rica em azoto que está a cair e a depositar azoto nesses habitats está a tornar impossível a sobrevivência do líquen, dos fungos, dos musgos e das flores selvagens”, explica Jenny Hawley da Plantlife, uma associação para a conservação de plantas selvagens.
As grandes massas de algas vistas por vezes nas praias também estão ligadas a este componente. Grandes quantidades de azoto e fósforo na água fazem com que as algas cresçam mais rapidamente do que os ecossistemas podem suportar, o que pode prejudicar a qualidade da água. Estas grandes massas de algas reduzem significativamente a quantidade de oxigénio presente na água, afetando negativamente os habitats e os recursos alimentares e levando à morte dos peixes e outros organismos que necessitam do oxigénio para sobreviver. Em alguns casos, podem também ser perigosas para os seres humanos, porque produzem toxinas e bactérias que causam doenças se as pessoas beberem ou entrarem em contacto com a água poluída, ou consumirem peixes ou moluscos contaminados.
De acordo com o Centro do Reino Unido para a Ecologia e Hidrologia, cerca de 80% do azoto usado pelos seres humanos – na agricultura, produção de carne e lacticínios, e nas indústrias dos transportes e energia – é desperdiçado e entra no meio ambiente como poluição. “Um dos maiores problemas é o fluxo de azoto da agricultura que entra nos cursos de água”, explica Kevin Hicks, investigador no Instituto do Ambiente de Estocolmo. “Em termos de pegada de azoto, a coisa mais intensiva que podemos consumir é carne. Quanto mais carne comemos, mais azoto estamos a introduzir no ambiente.”
De facto, a indústria da carne é considerada uma das principais ameaças, contribuindo para as alterações climáticas e a perda da biodiversidade: é responsável pela emissão de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono, metano e óxido nitroso (também conhecido como protóxido de azoto), através da digestão dos animais ruminantes e do uso de fertilizantes.
Invasão de espécies invasoras
Quase 20% da superfície terrestre encontra-se em risco de invasão de espécies alóctones (exóticas), tanto animais como vegetais. Um exemplo são os porcos selvagens, uma das espécies invasoras vertebradas mais comuns, de acordo com Christopher O’Bryan, da Universidade de Queensland. “Os porcos selvagens são nativos da Europa e algumas partes da Ásia, mas já estão em todos os continentes exceto na Antártida”, diz. Os cientistas estimam que, a nível global, a espécie produza a mesma quantidade de dióxido de carbono que um milhão de carros por ano.
Também a vespa asiática, presente em Portugal, é uma espécie invasora: como o nome indica, é originária da Ásia, e entrou acidentalmente na Europa há cerca de quinze anos. Além dos conhecidos riscos para os seres humanos, a vespa asiática causa prejuízos na apicultura – a espécie é uma predadora da abelha melífera, levando por vezes à perda de colmeias inteiras – e também na agricultura, pelos estragos que provoca em algumas colheitas de fruta (e indiretamente, através da redução da população de abelhas melíferas, responsáveis pela polinização).
As ilhas, no entanto, são os locais mais afetados por estas espécies, uma vez que abrigam muitas vezes ecossistemas únicos, que não se encontram em mais nenhuma parte do mundo. A ilha de Gonçalo Álvares, no Atlântico, por exemplo, enfrenta atualmente um problema grave que tem vindo a afetar a sua população de albatrozes-de-tristão. Ratos introduzidos acidentalmente por marinheiros no século XIX “colonizaram” a ilha, e alimentam-se das crias daquela ave. Apesar de as crias do albatroz-de-tristão serem bastante maiores do que os roedores, muitos não sobrevivem aos ferimentos deixados pelos ratos. De acordo com o RSPB, apenas 21% das crias de albatroz-de-tristão sobreviveram para se reproduzirem durante a época de reprodução de 2017/2018, o que está a acelerar exponencialmente o processo de extinção da espécie.
Apesar de já terem sido estabelecidos programas para erradicar a população de ratos da ilha, através do uso de venenos, alguns especialistas querem tentar outra abordagem: uma engenharia genética que introduziria um código numa população invasora, tornando os indivíduos inférteis, ou só de um género em todas as gerações subsequentes.
“Se esta técnica fosse comprovadamente eficaz e existissem mecanismos de segurança para limitar a sua implantação, introduzir-se-iam múltiplos indivíduos numa ilha cujos genes seriam herdados por outros indivíduos da população”, diz David Will, um gestor de programa de inovação com a Island Conservation, uma organização sem fins lucrativos dedicada à prevenção de extinções através da remoção de espécies invasoras das ilhas. “Eventualmente, teríamos ou uma população totalmente masculina ou totalmente feminina e deixariam de poder reproduzir-se.”
No entanto, o método ainda só foi utilizado em contexto laboratorial, e devido aos seus riscos ainda são necessários mais estudos para comprovar a sua eficácia. “Nenhum destes instrumentos genéticos será alguma vez uma panaceia. Nunca. Nem penso que alguma vez irão substituir as ferramentas existentes”, afirma Kent Redford, líder da Task Force de biologia sintética da IUCN. “Há uma esperança – e sublinho a esperança – de que as unidades genéticas artificiais tenham o potencial de diminuir efetivamente o tamanho da população de espécies invasoras com efeitos muito limitados para outras espécies.”