Há quase dois mil quilómetros de distância entre Lützerath da aldeia da Luz, mas é tanto o que as une como o que as separa.
Há 21 anos, quando se fecharam as comportas da barragem do Alqueva e as águas do Guadiana começaram a subir, foi necessário evacuar a Luz, que ficaria submersa com o tempo. A população da aldeia original foi retirada, mudando-se para uma nova Luz, a dois quilómetros de distância, construída de raiz para as albergar. Um pequeno grande preço a pagar pelo interesse público da barragem para o País, essencial para produção de energia e como reservatório de água.
Tal como há duas décadas em Portugal, também hoje na Alemanha se invocam valores mais altos para demolir a povoação de Lützerath e realojar quem lá vive. Há, no entanto, uma diferença de monta: enquanto, no caso da Luz, a infraestrutura prometia energia limpa, a morte de Lützerath é determinada pela extensão de uma gigantesca mina de carvão, para a Alemanha produzir eletricidade suja.
Da mina a céu aberto de Garzweiler, o “monstro” de 35 quilómetros quadrados, detido pela energética alemã RWE, que se prepara para engolir a aldeia, saem todos os anos 25 milhões de toneladas de lignite, também chamada de “carvão castanho” (um tipo de carvão particularmente prejudicial, porque produz menos calor do que o carvão comum, logo, menos eletricidade). Por cada tonelada de lignite queimada é emitida cerca de uma tonelada de dióxido de carbono. Ou seja, Garzweiler é responsável por 25 milhões de toneladas de CO2, o que equivale, só por si, a 62,5% das emissões totais de Portugal (40 milhões de toneladas de CO2, em 2021).

A destruição de Lützerath e de outras povoações vizinhas foi determinada em 2013, quando o tribunal constitucional alemão deu razão à RWE e aceitou a extensão da mina. Centenas de pessoas das aldeias situadas na área da extensão aceitaram ser realojadas, mas um morador de Lützerath recusou-se a abandonar a sua quinta. Em março do ano passado, outra decisão judicial obrigou-o definitivamente a sair, mas nessa altura já o agricultor, chamado Eckardt Heukamp, tinha por vizinhos dezenas de ativistas climáticos, que se começaram a mudar para as casas desocupadas em 2020, para impedir o alargamento da mina.
A semana passada, a ocupação foi terminada à força pela intervenção da polícia, mas os ativistas contra-atacaram: no sábado, milhares de pessoas (35 mil, segundo os organizadores, 15 mil, segundo as autoridades) deslocaram-se a Lützerath para protestar e tentar impedir os trabalhos. Muitas continuam lá, o que tem resultado em vários embates com a polícia. Centenas foram já detidas para identificação – entre elas, Greta Thunberg, que na segunda-feira discursou no local contra a mina.

Várias organizações não governamentais de ambiente têm apelado ao governo alemão para abandonar a extensão da mina. A RePlanet, (uma associação internacional de ambiente e ciência) emitiu um comunicado a exigir “que o governo alemão pare com a destruição de Lützerath e que transite para outras formas de energia mais limpas, abandonando todas as formas de carvão”.
Entre as “formas de energia mais limpa” sugeridas estão as renováveis, mas também a nuclear, um tema particularmente controverso na Alemanha. Aliás, a decisão do governo de Merkel, em 2011, de encerrar as centrais nucleares alemãs está na génese do problema, explica Luís Guimarais, cofundador do “braço” português da RePlanet. “De uma vez por todas, a Alemanha tem de começar a ter uma posição séria no setor energético. São décadas de erros atrás de erros, e agora, com a guerra da Rússia, embateu contra uma parede: as renováveis precisam de backup, e esse backup era o gás russo.”
O ativista, doutorado em Fusão Nuclear, garante que há apenas uma questão ideológica a impedir a Alemanha de manter em funcionamento as centrais nucleares (que não emitem dióxido de carbono), mesmo que para isso tenha de recorrer ao carvão, de longe o pior de todos os combustíveis fósseis, com um impacto tremendo no clima. “O eleitor alemão típico é muito antinuclear. É uma coisa que nasce logo na escola. Faz parte do plano de leitura nacional alemão uma obra, ‘A Nuvem’, que põe um medo pavoroso nas pessoas e é uma dos maiores vetores do antinuclearismo alemão. É a história de dois jovens, de 7 e 8 anos, em que uma central explode e a sociedade alemã é toda destruída. Há muito tempo que o povo alemão é induzido a ter medo do nuclear.”
As críticas de Luís Guimarais vão sobretudo para o partido “Os Verdes”, que hoje integra a coligação de governo. “Nunca foi um partido ecologista, mas sim antinuclear. Vendia o carvão como uma coisa boa, natural. Espalhava panfletos a defender o ‘carvão ecológico’ em vez da ‘energia atómica’. Isto quando as centrais nucleares alemãs são das mais eficientes à face da Terra.” Em outubro, Greta Thunberg defendeu a manutenção das centrais nucleares alemãs, em entrevista a uma televisão alemã apelidando o seu descomissionamento de “erro”. “É uma péssima ideia [o Governo] focar-se no carvão quando tem nuclear disponível.”
Alguns membros de “Os Verdes” surgiram nas manifestações em Lützerath, a protestar contra a mina. O partido, porém, votou a favor de expandir a mina de Garzweiler, decisão que enfureceu muitos dos seus apoiantes e começa a incendiar o partido por dentro. Um dos seus líderes, Robert Habeck, ministro da Economia e do Clima, justificou o “difícil compromisso” assinado com a empresa RWE (que implica a eliminação gradual da exploração de carvão até 2030) com a necessidade de assegurar a segurança energética do país, face à invasão russa da Ucrânia. Mas as suas explicações não convenceram a colega de partido Luisa Neubauer, a mais conhecida ativista climática da Alemanha. “‘Os Verdes’ capitularam à RWE; os ativistas, não”, disse a líder do movimento de greve pelo clima “Sextas-feiras pelo Futuro”.