Há três décadas, no início do outono de 1992, uma reunião entre algumas das maiores empresas industriais dos EUA e aquele que é hoje considerado o pai das relações públicas de Ambiente marcou o futuro do planeta e o avanço das alterações climáticas. Um elaborado plano para persuadir o público de que as alterações climáticas não eram reais foi acordado e hoje as suas consequências fazem-se sentir em todo o mundo. Numa entrevista à BBC, Don Rheem e Terry Yosie, dois dos membros da equipa de relações públicas presente na reunião, partilharam as suas histórias pela primeira vez.
Na década de 1990, as alterações climáticas foram ganhando importância na agenda política, à medida que se aprofundava a compreensão científica deste fenómeno, e vários relatórios focados em avaliar as suas consequências eram publicados. Nos Estados Unidos, o tópico ganhou especial relevância com a eleição de Al Gore, um ambientalista, para vice-presidente do país. Se o anterior ex-presidente, George Bush (pai), um ex-empresário da indústria do petróleo, levava em especial consideração os interesses deste mercado, Al Gore tinha outros objetivos, nomeadamente no campo da sustentabilidade.
Perante os renovados objetivos do novo governo, a Global Climate Coalition (GCC), uma organização de lóbi que contava com as principais empresas das indústrias de petróleo, carvão, aço, ferrovia e automobilística dos Estados Unidos, sentiu-se ameaçada, nomeadamente perante a possibilidade de ser imposta uma regulamentação que forçasse a redução das emissões de gases poluentes. Em jogo estava o lucro destas empresas, afetadas pela narrativa das alterações climáticas e pelas medidas que poderiam vir a afetar o seu negócio.
Numa tentativa de contornar a crescente preocupação que se fazia sentir face a este fenómeno, a GCC reconheceu que precisava de mudar a sua estratégia de comunicação no tópico das alterações climáticas e contratou uma empresa de relações públicas para o fazer: a empresa de E. Bruce Harrison, o pai das relações públicas ambientais.
Na época, Harrisson era pouco conhecido, mas a sua empresa, que dirigia desde 1973, era já responsável por diversas campanhas e os seus clientes incluíam várias das maiores empresas dos Estados Unidos, algumas das quais membros da GCC. Não era a primeira vez que Harrison era responsável por impedir regulamentações governamentais ou por desmentir estudos científicos, duas estratégias que terá utilizado na sua narrativa contra as alterações climáticas. Numa campanha para a indústria química, o relações públicas terá procurado desacreditar pesquisas sobre a toxicidade dos agrotóxicos e, pouco antes de aceitar trabalhar com a GCC, terá desenvolvido uma campanha contra o aumento das regulamentações que procuravam limitar as emissões poluentes produzidas pelos fabricantes de automóveis. “Ele era um mestre no que fazia”, contou à BBC a historiadora dos media, Melissa Aronczyk, que entrevistou Harrison antes de este morrer em 2021.
Formar uma equipa e pôr mãos à obra
O contrato com a GCC era bastante valioso, traduzindo-se num lucro de meio milhão de dólares anuais, pelo que a organização era um cliente cobiçado por muitas empresas de relações públicas. “Toda a gente queria ficar com a conta da Global Climate Coalition”, conta Rheem. Para ser selecionado pela GCC, Harrison reuniu uma equipa diversa de profissionais de relações públicas, tanto experientes como novatos. Entre eles estava Don Rheem, que não tinha credenciais na indústria, mas que havia estudado ecologia antes de se tornar um jornalista ambiental.
A GCC foi inicialmente formada com o objetivo de impedir quaisquer regulamentações ambientais que pudessem prejudicar o negócio das empresas que a constituíam. Enquanto jornalista de ambiente, Rheem estava interessado em perceber o ponto de vista deste tipo de indústrias e em ter um acesso privilegiado a todo o tipo de informações no tópico do ambiente. “Pensei: ‘Uau, esta é uma oportunidade de conseguir um lugar na primeira fila naquela que é provavelmente uma das questões mais urgentes da política científica e política pública que enfrentamos'”, conta, ao lembrar o momento em que recebeu uma oferta para trabalhar com a GCC.
Também Terry Yosie, entrevistado pela BBC, foi um dos contratados por Harrison depois de ter sido aceite pelo American Petroleum Institute, uma das maiores associações comerciais dos EUA para a indústria de petróleo e gás natural, da qual acabou por se tornar vice-presidente.
Formada a equipa, era necessário delinear um plano de ação. Harisson, o “guru das relações públicas”, como chegou a ser chamado, propôs uma estratégia que passava por convencer o público de que os dados científicos sobre as alterações climáticas não eram confiáveis e que, além do ambiente, os políticos tinham de ter em conta que as medidas contra os gases poluentes prejudicariam empregos, comércio e preços.
A campanha a desmentir as alterações climáticas contaria com várias frentes de ação: desde a publicação de artigos de opinião à contratação de jornalistas que seriam pagos para convencer o público de que as alterações climáticas não eram uma ameaça. Isto acontecia numa altura em que o próprio fenómeno das alterações climáticas estava apenas a começar a ser mais abordado pelos órgãos de comunicação e muito estava ainda por descobrir. “Muitos jornalistas estavam a lutar com a complexidade do assunto. O que eu fazia era escrever notas para que os jornalistas pudessem lê-las e atualizar-se”, admitiu Rheem.
O GCC lançou uma ampla gama de publicações, desde cartas a boletins mensais, que questionavam a origem das alterações climáticas e se o fenómeno seria, de facto, um risco. Num panfleto de propaganda desenvolvido pela empresa de Harrison, é possível ler que o efeito de estufa é um “fenómeno natural produzido por gases atmosféricos de origem natural e que até o momento não há evidências que indiquem que o clima tenha mudado como resultado de ação humana”. A intensa campanha no tópico permitiu que a empresa de Harrison fosse citada cerca de 500 vezes por vários órgãos de comunicação em apenas um ano.
Numa reunião entre Harrison e a GCC, em agosto de 1993, o pai das relações públicas terá, até, anunciado que, perante a campanha desenvolvida, vários membros do Congresso terão interrompido quaisquer novas iniciativas que tivessem em vista no campo da sustentabilidade. “A crescente consciencialização da falta de dados científicos corroborantes fez com que alguns no Congresso parassem com novas iniciativas”, disse Harrison, de acordo com o testemunho de Yosie, numa reunião.
“Os ativistas que alertam sobre o ‘aquecimento global’ reconheceram publicamente que perderam terreno no campo da comunicação no ano passado”, terá acrescentado Harrison na ocasião, ao aconselhar os seus clientes a ampliar a ofensiva recorrendo a outras vozes. “Cientistas respeitados, economistas, académicos e outros especialistas têm mais credibilidade com os media e o público em geral do que representantes da indústria”, explicou o patrão de Yosie.
Embora a maioria dos cientistas concordasse que a alterações climáticas provocada pelo Homem eram um problema real que requeria ação, um pequeno grupo argumentava que não havia motivo para alarme. O plano de Harrison exigia que estes membros da comunidade científica fossem pagos para fazerem discursos, escreverem artigos de opinião – cerca de 1 500 dólares por artigo – e falarem nas televisões e rádios locais a defender as suas teses favoráveis à GCC. “O meu papel era identificar as vozes que não estavam no mainstream e dar-lhes espaço”, admitiu Rheem. “Havia muitas coisas que não sabíamos na época. E parte do meu papel era destacar o que não sabíamos”, conta, explicando as estratégias da empresa de relações públicas. Num guia para a comunicação da Global Climate Coalition sobre as alterações climáticas pode, inclusive, ler-se: “Ao comunicar, devemos enfatizar as dúvidas que existem no campo científico sobre as alterações climáticas”.
De acordo com Rheem, também os órgãos de comunicação queriam incluir várias opiniões sobre o tópico nas suas coberturas e procuravam outras perspetivas além daquela que sustentava que batia à porta uma crise ambiental. “Os jornalistas estavam ativamente à procura de vozes contra as mudanças climáticas. O que estávamos a fazer era alimentar um apetite que já existia”, explica.
Segundo a BBC, muitos dos negacionistas das alterações climáticas asseguraram que os seus pontos de vista não terão sido influenciados por qualquer tipo de financiamento da GCC ou de outros grupos da indústria.
Do outro lado estavam os ambientalistas que continuavam a tentar alertar o mundo e o governo dos EUA para os efeitos devastadores das alterações climáticas, que hoje são sentidos por todo o planeta mais do que nunca. A campanha de Harrison, no entanto, provou-se difícil de igualar e impediu de muitas formas uma consciencialização mais ampla do problema. “A GCC espalhou dúvidas por toda parte e os ambientalistas não sabiam como responder”, lembrou o ativista ambiental John Passacantando, em resposta à BBC. “O que os génios das relações públicas que trabalhavam para as companhias petrolíferas sabiam era que, se dissermos algo muitas vezes, as pessoas vão começar a acreditar”.
Uma vitória para a GCC e uma derrota para o planeta
Num documento de 1995 fornecido por Aronczyk à BBC, Harrison escreveu que “o GCC conseguiu virar a maré da cobertura da imprensa sobre as mudanças climáticas, contrariando efetivamente a mensagem da ecocatástrofe, graças à tese da falta de consenso científico sobre o aquecimento global”.
Harrison conseguiu, através da sua campanha, impedir muitas ações contra as alterações climáticas, fomentando dúvidas entre os cidadãos dos EUA sobre a veracidade do fenómeno, mesmo quando existia consenso entre a comunidade científica de que o aquecimento global era detetável. O falhanço do protocolo de Quioto, um acordo internacional cujo objetivo era reduzir as emissões de gases de efeito de estufa, foi, por exemplo, uma das grandes vitórias da GCC, que partiu, exatamente, dessa hesitação dos americanos. Segundo um estudo desenvolvido pela Gallup e referido pela BBC, 44% dos entrevistados acreditavam que os cientistas estavam divididos no tópico.
No mesmo ano da negociação de Quioto, Harrison vendeu a sua empresa, Rheem mudou o curso da sua carreira profissional e Yosie envolveu-se em outros projetos ambientais. A própria GCC acabou, eventualmente, por se desintegrar, depois de alguns dos seus membros anunciarem que não estavam de acordo com as opções tomadas pela organização no que toca às alterações climáticas. Os efeitos da campanha de Harrison e da GCC, no entanto, perduraram e continuaram a fomentar dúvidas. Três décadas depois, as consequências fazem-se sentir em todo o mundo.
“Acho que é o equivalente moral a um crime de guerra”, disse o ex-vice-presidente Gore sobre os esforços das grandes companhias petrolíferas para bloquear qualquer tipo de legislação e medidas ambientais e antipoluição. “Estou convencido de que, em muitos aspetos, é o crime mais grave desde a Segunda Guerra Mundial. As consequências do que fizeram são quase inimagináveis”, acrescentou.
“Se faria algo diferente? É uma pergunta difícil de responder”, admitiu Rheem, dizendo estar “muito em baixo” na cadeia de comando do GCC. Na sua entrevista com a BBC o ex-jornalista ambiental insistiu que a ciência climática era muito incerta na década de 1990 e que os países em desenvolvimento, como a China e Rússia, foram os responsáveis por décadas de estagnação na área das alterações climáticas, não a indústria americana.
Outras questões pairam na sequência destes trinta anos: “O que teria acontecido se a GCC não avançasse com a campanha?”, “Como estaria o mundo hoje?”. Não há resposta possível para as questões formuladas, mas existem lições que podem ser retiradas do sucedido, assim como perguntas que ainda vamos a tempo de responder: “Estamos dispostos a não repetir o passado?”