O mundo dos vinhos é dos que mais cedo começou a sentir os impactos das alterações climáticas. Também por isso, há anos que se foi reinventando, adaptando-se a um clima mais difícil (mais seco, mais quente, mais imprevisível) e investindo em novas formas de produção. Uma mudança de paradigma, em que se tira partido da natureza, de um ecossistema equilibrado (atraindo, por exemplo, predadores naturais para combater as pragas, em vez da opção convencional, de usar pesticidas para matar tudo o que é pernicioso para as vinhas).
Foi para falar sobre esta revolução em curso que a VISÃO se encontrou com Mafalda Guedes, Head of Corporate Communications & Sustainability da Sogrape (e representante da 4ª geração da família fundadora), o maior grupo vitivinícola português, e com Josep Maria Ribas Portella, Climate Change & Sustainability Director da Família Torres, o maior grupo espanhol do setor, uma hora antes de ambos darem uma palestra privada sobre sustentabilidade no clube do JNcQuoi Ásia, em Lisboa.
A forma de produção no setor vivitinícola mudou? É hoje feita mais com a natureza e não contra a natureza?
Mafalda Guedes: Hoje sabemos melhor o que funciona na vinha e como podemos proteger a biodiversidade e a natureza. Sempre fomos sustentáveis desde a nossa fundação, mas acho que aprendemos e conhecemos melhor os terroirs, conhecemos os locais onde estamos e encontramos soluções para os tornar melhores. Obviamente, quanto mais tempo se permanece em cada lugar, mais conhecimento se obtém e se percebe como protegê-lo e como contribuir de uma forma positiva, como ter um impacto positivo.
Concorda que há uma mudança? Antigamente, o paradigma era matar o que ataca as vinhas, com pesticidas; agora, é chamar os predadores dessas pragas para ajudarem a manter o equilíbrio…
Josep Maria Ribas Portella: Sim. Aprendemos um pouco mais como funciona o ecossistema. É também uma oportunidade para o sector vitivinícola se mostrar como um protetor da natureza, regenerando o que há no solo e na envolvente das vinhas. Atualmente, o setor vitivinícola está a tornar as vinhas um símbolo de biodiversidade e natureza. E mostramo-lo. É muito visível. Numa vinha, hoje, vai ver muito mais biodiversidade em termos de vegetação, mas também mais fauna e até microrganismos, se analisarmos os solos. Esta é uma grande oportunidade, no sentido de proteger a natureza e aumentar a biodiversidade. É verdade que mudou essa perceção: em vez de matarmos o que é mau para a vinha, verificamos o que está em falta na vinha. Provavelmente falta algum elemento nutricional ou estamos a matar os elementos naturais que rodeavam a vinha e que a tornavam mais resistente. E, se os tiramos da equação, a videira fica completamente isolada contra as pragas. É tudo mais complexo do que no passado.
De certo modo, tudo tem que ver com o equilíbrio do ecossistema…
MG: Na Quinta do Seixo, temos um trilho de biobiodiversidade onde as pessoas podem percorrer um quilómetro até à vinha e perceber o impacto do que estamos a falar, de como a biodiversidade, com a manutenção de certas espécies, é realmente importante para manter esta vida do ecossistema. Assim, em vez de usar pesticidas e produtos químicos, usam-se certas espécies naturais para provocar confusão sexual nos insetos e para que as pragas desapareçam. É interessante perceber como tudo está tão ligado. Voltando à sua primeira pergunta, estamos muito mais próximos da natureza hoje do que estávamos há uns anos, e toda esta evolução baseia-se nos estudos que fomos fazendo e da consciência que temos de que, sem biodiversidade, é impossível viver. Estamos aqui para preservar um setor e o planeta.
Parece-vos que os consumidores têm consciência dessas mudanças? Ainda há muito a ideia de que antigamente é que a agricultura era bem melhor para o ambiente do que a agricultura moderna…
MG: Os consumidores estão a perceber melhor os impactos que temos ou que podemos ter no setor, mas é um trabalho em progresso. Leva tempo para essas mudanças serem compreendidas. Mas também penso que é importante partilharmos esta informação, porque somos responsáveis por dar a conhecer às pessoas como a natureza está envolvida na produção de vinho, ou como a produção de vinho vem da natureza. Basicamente, em alguns dos nossos vinhos, estamos apenas a engarrafar o que a natureza nos dá com a menor intervenção possível.
Em Espanha, também ainda há esta ideia generalizada de que a agricultura tradicional era mais amiga do ambiente?
JMRP: O clima em Espanha, pelo menos na zona mediterrânica, é mais seca, pelo que há menos doenças e é mais fácil haver agricultura biológica. Na Torres, de facto, temos trabalhado a terra do ponto de vista biológico há muitos anos, mas, na verdade, a grande mudança que fizemos foi em 2020, por isso não foi há muito tempo que compreendemos e abraçámos este tipo de produção regenerativa.
Mas os consumidores apercebem-se disso? Dão-vos crédito por isso?
JMRP: Estamos a tentá-lo, juntamente com outras empresas vinícolas. Lançámos, por exemplo, um certificado de agricultura regenerativa. Mas obviamente que isso não é suficiente. Temos de fazer com que os consumidores entendam o que isso significa. A forma mais fácil é convencê-los a visitarem-nos, porque realmente a mudança é enorme e visível. Por exemplo, ainda não há muito tempo arávamos o solo tanto quanto possível, e as vinhas pareciam um deserto, sem um único inseto. Não devido aos pesticidas, mas porque, ao matarmos o solo, matamos toda a cadeia natural. Hoje, esta abordagem diferente está realmente a mudar o cenário.
Falou em certificação: a genialidade da certificação biológica é a sua simplicidade; se é bio, não foram usados pesticidas sintéticos. Mas não conta a história toda, do ponto de vista da sustentabilidade. Por exemplo, não nos diz os consumos de água nem as emissões, entre outros parâmetros. Quão importante é a certificação e, sobretudo, a sua simplicidade para que seja compreendida pelos consumidores?
MG: A certificação dá-nos credibilidade e valida o que estamos a fazer. Por exemplo, 96% das nossas vinhas em Portugal são certificadas no âmbito da produção integrada e 4% no da produção biológica. A proteção integrada significa que olhamos para cada passo que damos, que cuidamos do solo de uma forma específica. Não generalizamos a nossa abordagem. Nós produzimos em muitos locais diferentes – não vai funcionar se fizermos a mesma coisa em cada vinha. Demora tempo a compreender cada solo, cada terroir, mas ficamos a saber as dificuldades de cada variedade, o que vamos obter com cada uma delas. Mas sim, é difícil levar esta informação ao consumidor. Temos de ir por camadas. Começamos a falar sobre isso e eventualmente o consumidor vai ficando cada vez mais interessado sobre de onde vem a vinificação e como o vinho é produzido. Está, sim, a ficar mais valorizado, mas leva tempo. E isto em todos os setores. A sustentabilidade está a tornar-se ainda mais importante. Agora, as pessoas estão realmente a exigir que as empresas e as marcas sejam sustentáveis.
Essa exigência de sustentabilidade por parte dos consumidores é mais clara noutros mercados, nomeadamente no Norte da Europa?
MG: Em alguns mercados, é um requisito. Não diria que é obrigatório, mas é mais um requisito do que noutros mercados.
JMRP: Para isso, as certificações são mais uma ferramenta. A biológica é um bom exemplo, porque é da União Europeia, portanto, é padronizada, verificada por terceiros, etc. Mas só se foca no tipo de produtos que são aplicados na vinha. Fica muita coisa de fora: como é feito o vinho, como trabalhamos com os fornecedores, aspetos sociais… Para alguns mercados, às vezes os certificados são um pouco confusos, e gostariam de ter um selo de sustentabilidade como conceito completo. Mas isso não existe.
Sim, há tantos parâmetros diferentes…
JRMP: Exato. O que é mais importante? O consumo de água? O trabalho social? Como enólogo ou produtor de vinho, temos a responsabilidade de fazer o melhor possível e de escolher o certificado certo, que represente o nosso melhor valor. Pode ser o biológico, o de gases com efeito de estufa, o de compromisso com a ação climática…
O consumidor acaba por ficar perdido, com tantas certificações.
MG: Sim, e é confuso. Há um mês, na Finlândia, estava a falar com um cliente sobre um produto bio, e dizia-lhe que o bio só se foca numa coisa. Mas como se chega aí? Como é que tratamos a comunidade local? Como é que trabalhamos com os fornecedores?
Fatores relacionados com alterações climáticas…
MG: Sim. Tem de ser uma abordagem holística, porque podemos ser sustentáveis num pilar e não ser nos outros.
JRMP: E há outra coisa. Os mercados nórdicos trabalham com quase 50 certificações diferentes. Por um lado, este é um bom procedimento, já que garante que todos os parâmetros são avaliados. Mas é preciso levar em conta quão fundo se vai em cada um deles. Se a análise for superficial, perde a validade.
Algum dia teremos um selo que garanta a sustentabilidade em todos os fatores essenciais?
JRMP: Não me parece. Temos de comunicar mais e melhor, de nos concentrar nos conceitos certos, tentar não confundir as pessoas. Mas acho também que a diretiva europeia contra o greenwashing vai ajudar a manter o consumidor bem informado e equilibra as condições de concorrência, em que todos os produtores têm de jogar com as mesmas regras.
Esta mudança na forma de produzir exige grandes investimentos iniciais. A longo prazo, financeiramente, compensa, seja pela reação positiva dos consumidores, seja por melhorias ao nível da produção?
MG: Compensa. Somos uma empresa familiar que produz vinho há 80 anos, e se não tivermos em conta estes aspetos, não seremos capazes de continuar a fazê-lo no futuro. Portanto, temos sempre de melhorar, de procurar melhores formas de produzir vinho. Isso leva tempo e necessita de muito investimento, mas vale a pena. Não o fazemos apenas porque acreditamos que os consumidores o desejam. Produzimos vinho há milhares de anos, e se não o fizermos será muito difícil produzir vinho em algumas regiões do mundo.