À beira de completar 50 anos, leva já 40 anos de militância. E quase trinta deles passados na Quercus. Mas Francisco Ferreira, uma das caras mais conhecidas da defesa do ambiente em Portugal, já não está ligado à Quercus, apesar de, na rua, ainda se dirigirem a ele como se fosse presidente da associação (coisa que, aliás, deixou de ser há 15 anos) – em dezembro de 2015, ele e largas dezenas de outros membros abandonaram-na para fundar a ZERO, Associação Sistema Terrestre Sustentável. É a altura certa para uma conversa sobre o passado, o presente e o futuro do ambientalismo.
Lembra-se de quando se começou a interessar pela defesa do ambiente?
Foi em 1976, aos dez anos, quando conheci o irmão do meu cunhado, que já andava no liceu e fundara o centro juvenil de Setúbal da Liga para a Proteção da Natureza. Estavam a organizar uma campanha para a criação da Reserva Natural do Estuário do Sado. Resolvi então, com uns amigos, criar também um grupo de defesa do ambiente.
Faziam o quê?
Arranjávamos uns slides sobre temas de ambiente – poluição, desflorestação, nuclear – e dávamos aulas a outras turmas. O Parque Natural da Arrábida tinha acabado de ser criado, e o ambiente começava a despertar. Em 1979, o centro juvenil teria êxito: foi criada a Reserva Natural do Estuário do Sado.
Por causa da vossa pressão?
Sim. Até participei numa manifestação na Praça do Bocage. Teria aí uns 12 anos. Criámos depois o Setúbal Verde. Foi esse projeto que mobilizou a destruição das casas clandestinas da Arrábida. Lembro–me de ficar cheio de carraças, a fazer o levantamento das casas, no meio do mato. Esse foi o suporte para o [secretário de Estado do Ambiente] Carlos Pimenta avançar com as demolições na Arrábida. E, em 1987, o Setúbal Verde decide fazer parte da Quercus, fundada dois anos antes. Em 92, o Viriato [Soromenho-Marques] assume a presidência da Quercus. Aí, sim, a Quercus começa a ganhar credibilidade. E eu entro no conselho científico da associação. Isto já formado em engenharia do ambiente. Sim. Gostava tanto das questões ambientais que decidi perceber a fundo disto. Era um curso novo. Depois, em 96, houve uma turbulência na Quercus, e não havia ninguém para assumir a presidência. Então eu, com 30 anos, assumi, até 2001. Foi difícil. Estava a fazer o doutoramento, o meu filho tinha nascido em 95…
Está há 40 anos ligado a associações ambientalistas. Mas o movimento evoluiu. As lutas de hoje não são as mesmas dos anos 70, 80, 90.
Nos anos 70, as grandes questões eram a poluição das indústrias, a criação das áreas protegidas e a luta contra a central nuclear em Ferrel. Nos anos 80, o debate, além das casas clandestinas na Arrábida e na ria Formosa, foi a eucaliptização do País e a poluição industrial. Na década de 90, o tema dos resíduos. Começa com as lixeiras e depois passa para os resíduos perigosos: incineradora contra coincineração. A Expo’98 também marcou, com os oceanos em destaque. E houve uma ação com a Greenpeace: impedimos a atracação de um barco com milho transgénico. O movimento ambientalista, aí, era irreverente e credível.
A Quercus participou em algumas ações com a Greenpeace, mas não foi uma coisa continuada no tempo. As duas ONG não têm propriamente o mesmo estilo.
Não. Aquilo era o estilo Greenpeace, e a Quercus juntou-se. Foi uma irreverência que se perdeu. Ao longo dos anos 2000, senti falta desse lado. Fomos para ações criativas, mas mais suaves.
Isso não foi uma opção consciente da Quercus? Sacrificar a irreverência pela credibilidade, por uma posição mais construtiva?
Sim, mas também foi por reação à própria população. As pessoas olhavam para nós como aqueles que faziam os alertas, mas que abusavam do mediatismo, face ao trabalho mais enraizado. Depois, em 1996, há dois projetos que me marcam muito: o Minuto pela Terra e o Minuto Verde. Mostraram como o movimento ambientalista tinha um papel social, pedagógico. E não é fácil fazer a ponte entre esse lado institucional e pendurarmo–nos num sítio qualquer a lançar um alerta.
Nestes últimos 40 anos, que grandes batalhas foram ganhas pelo movimento ambientalista?
Só o facto de existirem movimentos ambientalistas é uma vitória. E isso é reconhecido pelas empresas, pela sociedade, pelos governos. Vitórias mais concretas? A criação das áreas protegidas, a batalha das lixeiras, o facto de a incineradora dedicada não ter avançado, ainda que a opção pela coincineração tenha sido uma meia vitória.
A coincineração não era um assunto unânime dentro da Quercus.
Não, de todo. Havia muitas vozes discordantes.
E as derrotas?
A eucaliptização foi uma derrota para todos. Também a construção de algumas barragens, na sua localização ou dimensão. No caso do Alqueva, foi a dimensão. Aqueles 120 mil hectares [de área agrícola] não requerem tanta água. Podíamos ter inundado menos área. Outra derrota foi a decisão entre uma barragem em Foz Coa e o Sabor – os argumentos da arqueologia tiveram mais força do que os da paisagem. E agora temos novos desafios, como a prospeção de petróleo. Vamos ver como reage um País que se projeta como exemplo à escala mundial nas energias renováveis e que agora, no século XXI, se prepara para iniciar um ciclo de exploração de petróleo, que é algo que faz parte do passado, que mancha esta imagem verde de uma nova economia.
Este episódio do petróleo confirma a ideia de que Portugal só está na liderança das renováveis porque não tinha outra remédio? Por necessidade e não por convicção?
Sem dúvida. O que me espanta até é termos demorado tanto tempo a fazer o investimento nas renováveis.
A hídrica: esse é um caso em que a sustentabilidade é inimiga de si própria. Por um lado, temos as metas das alterações climáticas, e por isso precisamos de energia renovável; por outro, as barragens têm um impacto enorme no ecossistema.
Por isso é que nunca fui contra as barragens. É preciso é perceber que barragens, onde e com que dimensão. O Alqueva demonstra bem isso: a cota devia ser mais baixa. Mas as barragens são fundamentais. São ótimas a armazenar energia potencial em grande escala.
Além de ambientalista, é professor universitário. Mas o ativismo ambiental e a ciência nem sempre se encaram olhos nos olhos. Como convive com isso?
Sinto-me muito confortável. Os cientistas também têm de ter uma visão crítica sobre a ciência que fazem. Por outro lado, os ambientalistas só ganham quando têm uma visão credível, objetiva, consubstanciada.
Há guerras erradas a serem travadas? Por exemplo, a oposição da Greenpeace aos organismos geneticamente modificados (OGM) e mais concretamente ao arroz dourado, enriquecido com vitamina A, que pode salvar muitos milhares de pessoas e que ainda a semana passada foi a razão de uma carta aberta a criticar a Greenpeace, assinada por mais de cem prémios Nobel.
Esse é um excelente exemplo de como há cientistas a trabalhar na mesma área com diferentes conceções dos resultados da ciência. A visão sobre o ambiente nos EUA é de risco; na Europa, vigora o princípio da precaução.
Mas esse é o lado político. Do científico, há consenso na questão da segurança dos OGM.
Mas deve ser esse o foco? Há aqui uma questão paralela: o problema não está na quantidade de recursos, mas na forma como são distribuídos. Aqui é a mesma coisa. O milho transgénico não salvou o mundo. As expectativas de rendimento estão longe de ser confirmadas. Melhoraram, sem dúvida, mas… O arroz dourado… Não sei se não há aqui também um excesso de expectativas por parte dos cientistas.
Mesmo que o resultado do arroz dourado seja metade do que os cientistas preveem, continuamos a falar de centenas de milhares de vidas salvas [estima-se que morram mais de 600 mil crianças por ano devido à deficiência de vitamina A].
Sim, mas tenho de contrabalançar isso com as alternativas para lutar contra a fome no mundo.
Má distribuição de alimentos vai haver sempre. É uma utopia imaginar que se vai resolver esse problema.
Está bem, mas se há um conjunto de riscos associados [aos OGM], é legítimo pôr em causa se devo avançar. As questões que têm sido levantadas são pertinentes. E a questão é saber até que ponto os riscos são aceitáveis. Mas também é verdade que as consequências que as ambientalistas previam não aconteceram todas.
A ZERO, a sua nova associação, diz que quer promover o equilíbrio entre o ambiente e a economia. Economia não é uma palavra que costume entrar no léxico ambientalista…
Queremos fazer a ponte do ambiente com o social e o económico. Empresas, organizações de desenvolvimento. Temos de olhar para a qualidade de vida das pessoas. Usar os recursos de forma sóbria. Mudar o paradigma: deixar de associar a felicidade da Humanidade ao consumo.
Diria que a ZERO é uma Quercus menos lírica, mais pragmática?
Tem um enfoque mais amplo no tempo e no espaço. A Quercus tem uma atividade fundamental na proximidade às pessoas. A ZERO quer olhar para o futuro de Portugal daqui a 30, 40, 50 anos. Não podemos continuar a consumir da mesma maneira. É uma questão de sustentabilidade. Isso envolve estudar, olhar, discutir.
O que aconteceu? Porque é que tanta gente que estava nas bases da Quercus decidiu bater com a porta?
Havia muita insatisfação. Na Quercus, o entusiasmo por pontes [com outros setores da sociedade] e estratégias mais longínquas não é grande.
Porquê? Por não terem um retorno mediático tão imediato?
Talvez. E pela necessidade de garantir que as pessoas vejam o seu trabalho mais rapidamente.
O que a Quercus ganha em imediatismo não está a perder em credibilidade?
Sim. E não só. Uma associação de ambiente tem de ter um espírito diferente. Não é uma empresa em que se marque o ponto e trabalhe X horas. Em que se envie ordens para serem cumpridas.
No início, falava de uma complementaridade entre a ZERO e a Quercus. Sete meses depois, esse desejo traduziu-se em alguma coisa?
Ainda não. Mas a abertura da parte da ZERO é total. Somos poucos, os ambientalistas.
E têm de remar para o mesmo lado.
Temos de remar para o mesmo lado. Mas de forma diferente. Uns vão de jangada, outros num barco profissional, e com pás diferentes.
Que balanço faz deste meio ano de existência da ZERO?
Temos de fazer um esforço para nos tornarmos maiores. Esse é o problema das associações em Portugal. O número de pessoas com quotas pagantes é mínima, de poucos milhares. Precisamos de mais associados. Mas temos um balanço acima das expectativas. Já temos dificuldade em gerir a quantidade de pessoas que quer colaborar na ZERO. Quase todos os dias recebemos alguém novo. Isto apesar de eu ir na rua e ainda acharem que sou presidente da Quercus, coisa que já não sou há 15 anos…
Hoje, são as alterações climáticas que concentram as preocupações. É este o maior desafio ambiental de sempre?
Sim. O maior desafio da Humanidade. Um problema à escala planetária a longo prazo, muito mais complexo do que a camada de ozono, que implica mudar o estilo de vida, opções de consumo, comportamentos.
Depois de tantos objetivos falhados ou adiados nas cimeiras do clima, não sente que está a lutar contra moinhos de vento?
A última coisa que quero é lutar contra moinhos de vento! Gosto muito das eólicas. [risos]. Mas sim, claro que sim. E não diria só o falhanço de Copenhaga. Por outro lado, a Cimeira de Paris ficou acima das expectativas.
Vamos agora ver se as medidas se confirmam na prática…
Claro. A velocidade da política mundial, nas negociações climáticas, é a de um caracol, quando precisava de ser a de uma lebre. Mas é a questão de ver o copo meio cheio ou meio vazio. Nas escolas, na sociedade, é preciso dar indicações às pessoas para elas saberem o que podem fazer.
A sua esperança é que a sociedade evolua mais depressa do que a política?
Sim, e também a própria tecnologia. O facto de conseguirmos ter painéis fotovoltaicos a 20% do preço de há 10 anos… Isso é fundamental.
Mudou de opinião em relação a algum assunto? Há alguma convicção antiga que agora, ao olhar para trás, pense: “Não tinha razão”?
Houve casos em que, na altura, apostei numa mediatização e protagonismo que não mereciam. Que foram empolados ou não foram estratégicos. Por exemplo, a ponte Vasco da Gama. A ponte é efetivamente um erro. A solução devia ter sido Chelas-Barreiro com comboio. Mas os impactos que se falavam, e a que eu dei muita visibilidade, não se concretizaram. E não me custa assumir isso.
E houve casos em que o tempo lhe tenha dado razão?
Nos resíduos, nos eucaliptos… E há casos em que a crise nos deu razão. Os inúmeros empreendimentos turísticos, como o Pinheirinho, a Costa Terra, o estádio em Setúbal: aí, foi a crise que nos salvou, que parou esses projetos. A própria redução dos gases com efeito de estufa foi também ajudada pela crise. Às vezes, as circunstâncias são diferentes do que esperávamos. Para o bem e para o mal.