Na semana passada foi divulgado o 5º relatório do IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas), depois de uma reunião de cinco dias em Yokohama, no Japão. O relatório foi escrito por 309 autores de 70 países, com contributos dos 1800 cientistas do IPCC que recolhem dados sobre fenómenos climáticos que ocorrem em todo o planeta.
O resultado é contundente: as alterações climáticas são irreversíveis e o seu efeito futuro será catastrófico. O IPCC alertou para que a manutenção do padrão de emissões de gases com efeito de estufa e as consequências desse statu quo coloca já em causa toda a estabilidade social dos sistemas humanos. Guerras civis e violência nas comunidades são alguns dos alertas claramente descritos nos documentos. A maior vulnerabilidade dos mais pobres às alterações ambientais faz-se sentir de forma clara e o agravamento das alterações climáticas torna os pobres mais pobres, enquanto cria mais fenómenos de pobreza generalizada em certas regiões do globo.
O cenário mais extremo identificado no relatório é um aumento de 5,5ºC da temperatura global do planeta até 2100. Nesse cenário, a destruição de sistemas únicos e ameaçados, a ocorrência muito frequente de eventos climáticos extremos, os impactos acumulados globais e a ocorrência de eventos singulares de grande escala (que provoquem uma disrupção climática como, por exemplo, com que a altura média das águas suba rapidamente 5 metros de altura ou que os polos derretam, podendo incluir a paragem das correntes marinhas ou mudanças na circulação atmosférica) são certos ou com muito elevada probabilidade. Este cenário mais extremo é o mais plausível de ocorrer: basta manter as coisas como elas estão.
O cenário menos extremo identificado no relatório é um aumento de 1 a 2ºC até 2100. Nesse cenário, a destruição de sistemas únicos e ameaçados continua a ser quase uma certeza, a ocorrência frequente de eventos climáticos extremos é altamente provável, os impactos acumulados globais também, assim como a ocorrência de eventos singulares de grande escala. Para se atingir este cenário seria necessária uma grande redução das emissões de gases com efeito de estufa, assim como a aplicação de várias medidas de mitigação e preparação para a nova realidade climática.
A Exxon Mobil, multinacional petrolífera americana e um dos maiores contribuidores privados para emissão de gases com efeito de estufa (em 2º lugar, atrás da Chevron Texaco, segundo o jornal diário britânico The Guardian) declarou no dia seguinte à publicação do relatório que as alterações climáticas não a impedirão de continuar a vender combustíveis fósseis. Perante o avolumar de evidências científicas baseadas no trabalho desenvolvido por milhares de cientistas de todo o globo (o número de publicações apoiando as evidências das alterações climáticas mais do que duplicou desde o último relatório do IPCC, em 2007), a arrogância de quem destrói o planeta de forma consciente e irreversível mostra-se sem pudor. O petróleo está a cozinhar o planeta e o modelo económico e energético baseado nos combustíveis fósseis recusa abrir caminho a quaisquer alternativas.
Esta arrogância é acompanhada por milhares de opinion-makers [comentadores] a soldo, assim como órgãos de comunicação social que colocam no mesmo plano cientistas do IPCC e comentadores que têm “ideias” sobre “assuntos”. Várias redes de financiamento por parte das petrolíferas e alguns grupos económicos aos think tanks [grupos de estudos, pensamento] de céticos do clima já foram expostas publicamente.
Os impactos das alterações são conhecidos. O aquecimento global pode ser atacado por vários grupos de pressão, mas quando treze dos catorze anos mais quentes de que há registo ocorreram depois de 2000, essa refutação não pode ser levada a sério. É bastante difícil resumir um relatório que demonstra que o impacto das alterações climáticas ocorre em todos os ecossistemas, todos os mares e oceanos, que afeta a vida da maioria da população humana enquanto provoca o maior período de extinções em massa desde o desaparecimento dos dinossauros. Os alertas são olimpicamente ignorados por uma elite dirigente que, a coberto da crise financeira se recusa a mudar o rumo, orientando toda a produção e o consumo energético para o modelo que ameaça o único planeta em que podemos viver.
Na Europa, em particular, os céticos das alterações climáticas não têm tanta força como na América do Norte, mas as respostas às alterações climáticas tão pouco se fazem sentir. Há duas opções para ignorar o que se passa: reconhecer as alterações climáticas nos discursos, e dizer que não há dinheiro para tratar do problema; ou dizer que se está a tratar do problema quando o dinheiro é utilizado para outras coisas (incluindo várias que aumentam as emissões de gases e fragilizam o continente). O desvio das verbas de mitigação ambiental e climática para atividades produtivas é uma constante, já que a União Europeia e os Estados-membros fazem uma lavagem verde do investimento público comunitário, sem preparar o continente para o que os próximos anos trarão.
Por vivermos há tantos anos em crise (desde os anos 90 que as crises, reais ou imaginadas, na vida ou nas bolsas, estão presentes todos os dias no discurso público e mediático) fomos perdendo a capacidade de reagir a notícias de crise e urgência. A sociedade foi anestesiada. E perante tantas crises que se sobrepõe, fez-se uma escala de prioridades, escala essa que se baseia não na lógica mas no poder de controlo da informação e do poder e na defesa do imediato. Não existe nenhuma resolução para uma crise económica perante o cenário que se desenha e que já se materializa.
O mundo mudou por causa da ação humana, e apenas a ação humana poderá minimizar o impacto dessas mudanças. O facto de as decisões sobre a adaptação e as mudanças económicas e energéticas necessárias estarem nas mãos daqueles mais afastados dos impactos diretos das alterações climáticas ajuda a impedir a ação concreta para minimizar os impactos e preparar-nos para o embate. E o horizonte do embate é hoje, não apenas daqui a 100 anos, pelo que a escolha de não olhar para o futuro e deixar para as próximas gerações a resolução dos problemas não é uma opção viável.
As dívidas públicas e os défices não interessarão a ninguém em Portugal quando as comunidades no litoral forem fustigadas por tempestades tropicais e tufões, quando a linha de costa recuar dezenas de metros em dias e arrastar as areias para o mar, derrocando as arribas e destruindo as dunas, quando os incêndios florestais triplicarem ou quintuplicarem (e ainda há plantações florestais para arder isso tudo?), quando forem ainda mais as pessoas a morrer de calor no verão e a morrer de frio no inverno, quando a secas prolongadas se seguirem cheias destruidoras, acabando com a agricultura e solos já degradados.
A subida do PIB e a valorização em bolsa das cotadas será uma ilusão afastada da realidade de um mundo de agrura e de dificuldades, na melhor das possibilidades, ou de guerra e violência, na mais plausível. A catástrofe acima descrita não faz parte do pior cenário possível segundo o relatório do IPCC. É um cenário moderado, e pode ocorrer muito pior. O mundo não está preparado para as alterações climáticas, e as populações estão muito vulneráveis. Vivemos sob uma inconsciência nacional e internacional, que ignora a Ciência na defesa de dogmas ideológicos que esperam que eventualmente se materialize a resolução dos problemas através da aleatoriedade competitiva dos mercados quando o que é preciso é a ação imediata, organizada e cooperativa de toda a sociedade a nível mundial.
Talvez já tenhamos ultrapassado a encruzilhada da História em que podíamos ter decidido viver em harmonia com o Ambiente. Embora tenhamos legislado para o defender, a marcha da força industrial e comercial, a pressão pelo lucro crescente e a acumulação eterna de riquezas foi até agora mais forte que a força da razão e da evidência de que precisávamos evitar chegar aqui. A legislação não serviu, não chegou, não foi efetiva. A sociedade, enquanto conjunto, falhou, deixando-se guiar por grupos que não tiveram o interesse comum como prioridade. Depois de termos falhado a primeira encruzilhada, chegámos a uma segunda.
Devemos ou não preparar-nos para um futuro de adversidade climática? Devemos preparar a população e o território para viver noutra região climática? O mundo já é outro mundo, com o aumento da temperatura da água e do ar, com o aumento das ondas de calor, com a mudança dos habitats e comportamento das espécies, com o aumento da mortalidade das árvores, a mudança das propriedades físicas e químicas dos oceanos, o derretimento das neves eternas e do permafrost [tipo de solo da região ártica, em que a terra, as rochas e o gelo formam uma camada permanentemente congelada] e a redução da produção alimentar. Foi a ação humana que fez isto. Foi a poluição atmosférica que matou uma em cada oito das pessoas que morreram no ano passado. Não há mais business as usual [expressão idiomática inglesa que designa fazer algo da mesma maneira, sem alterações]. O temporizador da bomba-relógio está a esgotar-se. Já temos um novo mundo ao virar da esquina, e precisamos preparar-nos para ele enquanto sociedade. Estamos muito atrasados.
João Camargo
Engenheiro do Ambiente
Doutorando em Alterações Climáticas