Diz-se que África é o continente do futuro. O penúltimo número da revista Time, por exemplo, publica uma longa peça sobre “um continente à beira de uma revolução agrícola”.
O texto procura demonstrar que se está a assistir a uma transição em larga escala, da agricultura de subsistência para a comercial.
A África estaria a transformar-se na horta e no pomar que alimentariam os esfomeados de amanhã. Menciona os casos da Etiópia e do Quénia, que se transformaram, nos últimos anos, em países exportadores de legumes, frutas e flores. A Time é, em regra, uma publicação equilibrada. Por isso, o texto, que, no seu conjunto, é muito otimista, deixa entender que nem tudo serão rosas.
Na verdade, o que está a acontecer é mais complexo do que possa parecer.
Para começar, haveria que ter em conta o crescimento populacional. Quando, há 33 anos, comecei a lidar com as questões do desenvolvimento em África, a população total era de 460 milhões. Hoje, de Argel à Cidade do Cabo, vivem mais de mil milhões de almas. No final deste século, terão ultrapassado os 3 500 mià atribuição de 20 mil hectares a um grupo agroalimentar italiano, ligado à produção de biocombustíveis. As terras em disputa servem para a sustentação, mesmo se limitada, dos residentes em mais de 60 aldeias. Com o projeto comercial, as aldeias darão lugar a campos de milho, que será exportado. Casos semelhantes a este têm acontecido no Uganda, na Etiópia e na África Austral. Em 2009, o Presidente de Madagáscar foi forçado a demitir-se, após uma revolta popular, por querer dar à empresa sul-coreana Daewoo terras com uma área equivalente a três vezes o Algarve.
A corrida à compra de latifúndios faz-se com o empenho direto dos estados de origem dos investidores passou a ser uma das principais vertentes das suas relações exteriores e com o beneplácito dos governos africanos. O Vietname é o caso mais recente. Completou, há dias, uma expedição à Serra Leoa, onde planeia lhões, mas não é preciso ir tão longe, para perceber o desafio impossível que estes valores representam.
Pensemos num horizonte que não esteja muito distante do presente: dentro de 20 anos, teremos em África cerca de 1 600 milhões de pessoas. Que condições de vida vão ter?
OS SENHORES DAS TERRAS
É um facto que a agricultura em moldes comerciais faz parte da resposta. Mas, atenção! A pressa de explorar este filão, sobretudo na última década, tem levado a casos flagrantes de usurpação de terras, de expulsão de milhares de famílias rurais das terras ancestrais, de violações dos direitos humanos e de concentração do poder económico nas elites nacionais aliadas aos grandes interesses internacionais dos negócios agrícolas. Há dias, no Norte do Senegal, em Fanaye, houve confrontações violentas, entre os agricultores e os representantes do governo.
Os camponeses opõem-se, tenazmente, à atribuição de 20 mil hectares a um grupo agroalimentar italiano, ligado à produção de biocombustíveis. As terras em disputa servem para a sustentação, mesmo se limitada, dos residentes em mais de 60 aldeias. Com o projeto comercial, as aldeias darão lugar a campos de milho, que será exportado. Casos semelhantes a este têm acontecido no Uganda, na Etiópia e na África Austral. Em 2009, o Presidente de Madagáscar foi forçado a demitir-se, após uma revolta popular, por querer dar à empresa sul-coreana Daewoo terras com uma área equivalente a três vezes o Algarve.
A corrida à compra de latifúndios faz-se com o empenho direto dos estados de origem dos investidores passou a ser uma das principais vertentes das suas relações exteriores e com o beneplácito dos governos africanos. O Vietname é o caso mais recente. Completou, há dias, uma expedição à Serra Leoa, onde planeia investir na produção de arroz. Também recém-chegado é Singapura, que acaba de descobrir a África como um destino de investimentos agrícolas e está a estudar as possibilidades oferecidas pelo Gabão, Namíbia e Botswana, bem como pelo Quénia e Uganda. A China é, todavia, o caso mais conhecido. Há mais de 20 anos que aposta na diplomacia económica e procura estabelecer parcerias, altamente vantajosas para os seus interesses nacionais, com todo o tipo de regimes em África.
A Índia, a Coreia do Sul e a Arábia Saudita fazem parte do mesmo rol. O plano da Arábia Saudita é dos mais flagrantes: atravessou o mar Vermelho e comprou, por valores insignificantes, à volta de 4 milhões de hectares de terras no Sudão, ou seja, o equivalente a quase metade da superfície de Portugal. É mais um dos seus investimentos para a era pós-petróleo.
A Etiópia e Moçambique estão como o Sudão: têm mostrado, sobretudo nos últimos sete ou oito anos, uma grande disponibilidade para alienar terrenos a consórcios multinacionais.
METRÓPOLES DE MISERÁVEIS
Estas práticas poderiam ser equacionáveis se houvesse respeito pelos interesses de todos, em especial, pelos direitos das populações diretamente atingidas.
O que acontece é que uma parte dos camponeses tradicionais passa à condição de operário agrícola, com remunerações irrisórias e na total dependência dos novos senhores da terra. Vi esse tipo de servitude na África Austral e Oriental. Posso garantir-vos que leva à perpetuação da pobreza.
Outros pegam nas compensações recebidas, umas ninharias, com o hectare pago a preços ridículos, gastam-nas num ápice, e depois veem-se obrigados a juntarem-se aos milhões que vivem nos subúrbios das grandes cidades.
A migração para os centros urbanos será, aliás, uma outra parte da resposta ao crescimento demográfico. O crescimento acelerado das zonas metropolitanas é, no entanto, um problema sem solução, em muitos cantos do mundo pobre, de Manila a São Paulo. Dois mil milhões de pessoas vivem em bairros de lata ou nas ruas das grandes urbes do Terceiro Mundo. Dentro de 15 anos, esse número terá duplicado.
A África de hoje tem Lagos como o exemplo de uma urbanização caótica.
É uma cidade ingovernável, inumana, que faz medo. As elites fugiram para a nova capital, Abuja, que, com o tempo, irá sofrer dos mesmos problemas.
Quantas cidades como Lagos haverá dentro de 20 anos? De Dakar a Luanda, de Addis Abeba a Nairobi, do Cairo a Lusaka, um pouco por toda a parte, haverá uma transferência da pobreza dos campos para a miséria das megacidades.
Cada uma delas será um labirinto de insalubridade e desespero, de insegurança e conflito. As revoltas do futuro terão o seu berço nas urbes gigantescas.
MENOSPREZOS AGRÍCOLAS
Mesmo com a urbanização acelerada do Terceiro Mundo, mais de metade dos pobres continuarão a viver em zonas rurais. A verdadeira solução, para eles, não terá que ver nem com o estabelecimento de um grande número de latifúndios comerciais nem com as migrações internas. Estudos recentes, da responsabilidade do Banco Mundial, mostram que a melhor aposta no futuro passa pelo apoio aos pequenos agricultores.
É aí que a revolução agrícola deverá ter lugar. O crescimento do PIB que tenha como base este tipo de produtores tem um impacto quatro vezes maior na redução da pobreza que o crescimento do PIB nos setores não-agrícolas. Para assim acontecer, o pequeno agricultor requer acompanhamento contínuo por técnicos competentes e dedicados, sementes de qualidade, pesticidas e sistemas de irrigação que sejam racionais e parcimoniosos. Precisa, igualmente, de condições de acesso aos mercados, incluindo armazéns que permitam a conservação dos bens produzidos, e vias de acesso adequadas.
Seria encorajador ver os ministérios da Agricultura recuperar a eficiência perdida.
Também a cooperação internacional, quer da UE quer doutras fontes, abandonou, há muito, a agricultura. Atualmente, 75% dos pobres vivem em zonas rurais.
Mas a Europa e outros só dedicam 4% dos seus fundos de ajuda ao setor agrícola. O último ciclo de cooperação para o desenvolvimento que ainda viu uma parte significativa dos seus dinheiros serem investidos na agricultura foi o de 1985-1989.
Desde então, quem decide em Bruxelas, Londres, Washington ou Nova Iorque, deixou de considerar o setor prioritário e virou-se para as questões da governação.
É verdade que sem boa governação não é possível atacar a pobreza de modo durável. Porém, como em tudo, é preciso equilíbrio na definição das prioridades.
E voltar a considerar o apoio à produção agrícola como um elemento fundamental na luta contra a pobreza.
A ÁGUA COMO FONTE DE CONFLITO
A gestão da água potável é outro desafio de monta, a norte e a sul. No caso dos países do Sul, a situação atual já é problemática.
As grandes metrópoles não conseguem responder às necessidades de abastecimento de água aos seus residentes. Esta é comprada aos baldes, a um preço que, se fosse calculado em metros cúbicos, seria várias vezes o valor pago pelas famílias europeias. Nas zonas rurais, o acesso à água é cada vez mais problemático. Lembro-me da visita que fiz ao Lago Chade, em 2008. Depois de percorrer uma sucessão de pântanos, e de perguntar várias vezes, onde está o verdadeiro lago, cheguei a um lençol mais aberto, pouco mais do que uma albufeira, e disseram-me, está aqui! O Lago Chade, que inicialmente banhava a Nigéria, o Níger, os Camarões e o Chade, 23 mil quilómetros quadrados de água e vida, tem agora apenas 900 km2 de superfície. Ou seja, passou de uma área duas vezes superior ao distrito de Beja para uma que é menor que a do município de Beja.
Em sociedades profundamente desiguais, os poderosos controlam o acesso à água. Recordo-me que, na fronteira com o Darfur, numa zona na periferia do deserto do Sara, o sultão local tinha o monopólio dos poços e da distribuição da água, para os consumos humano, animal e hortícola.
Esta era uma das suas fontes de poder e de rendimento. Quando as equipas de engenharia militar da Noruega, que integravam a missão de paz que eu comandava, descobriram um vasto lago subterrâneo na região, a grande questão passou a ser a de como tornar o recurso acessível, sem alienar a nossa aliança tática com o sultão.
Foi preciso muita diplomacia, à volta de muitos copos de chá de menta. O caso teve o mérito de mostrar que a mudança social é possível, se for feita com a participação de todos.
A água vai ser uma das grandes fontes de conflito do futuro. Quer ao nível local quer entre estados. No último ano, acompanhei um projeto que procura promover um acordo entre os cinco países da Ásia Central, antigas repúblicas soviéticas, sobre a gestão dos rios da região, em especial o Syr Darya e o Amu Darya. A região herdou da URSS um sistema de utilização dos caudais, para campos vastíssimos de irrigação intensiva e para produção de energia elétrica, que só pode funcionar se existir bom entendimento entre os países. O que hoje ocorre são usos abusivos dos rios e dos lagos, conforme os interesses políticos de curto prazo de quem está no governo no Quirguistão, Tajiquistão, Usbequistão, Cazaquistão ou Turquemenistão, e sem qualquer tipo de consideração pelas necessidades dos vizinhos ou pela sustentabilidade do recurso. As tensões entre estes estados são enormes. O potencial de um conflito armado entre eles é um facto. Este pode ser um protótipo dos conflitos das décadas que se aproximam.
OS PEIXES ESTÃO TRAMADOS
Não seria justo não falar das pescas. Este é um setor que muito tem contribuído para aliviar a pobreza das populações. Está, presentemente, em risco de se tornar um recurso do passado. Os estados, incluindo os membros da União Europeia, não têm a coragem de tomar as medidas que se impõem para proteger as espécies.
Seriam precisas medidas de longo prazo, mas os políticos só sabem mexer-se em horizontes limitados. Esta é uma matéria que deveria ser tratada no quadro da ONU e as decisões deveriam ser de cumprimento obrigatório. Dou dois exemplos concretos. Quando cheguei à Serra Leoa, em 2004, uma parte significativa da dieta dos mais pobres era satisfeita com os produtos da pesca. Depois, com a estabilização do país e a chegada dos navios–fábrica chineses e sul-coreanos, foi um ver-se-te-avias. Em finais de 2007, quando saí de Freetown, era já frequente ver os pescadores tradicionais voltar do mar com uma captura ínfima. Quem ganhou e quem perdeu? Outro exemplo. Em Bissau, o delegado da cooperação espanhola passa uma parte do seu tempo a tratar da libertação dos pescadores ilegais da sua nacionalidade. Faz lóbi para que sejam perdoados. Quando o estado guineense tem a ousadia de impor multas aos barcos espanhóis, o delegado paga-as com o dinheiro que a cooperação havia destinado à Guiné. Tudo isto acontece, enquanto os representantes da UE e o da ONU andam a dizer ao governo que é preciso criar um estado de direito.
As contradições, em matéria internacional, davam para escrever volumes.
Mas não há tempo para ironias. É necessário utilizar cada minuto na construção do futuro.