Duas das mais notáveis vozes da literatura em português deste século juntaram-se no palco do VISÃO Fest na tarde deste sábado. Dulce Maria Cardoso, que nas páginas iniciais da VISÃO assina a crónica Autobiografia Não Autorizada, convidou Djaimilia Pereira de Almeida – e logo de início justificou essa escolha: “Das melhores descobertas que fiz na literatura portuguesa, e não só portuguesa…”. A moderar a conversa entre as escritoras, com vista para o papel da literatura no futuro, esteve a subdiretora da VISÃO, Sara Belo Luís.
E começou-se por essa velha e essencial questão que deixa sempre os escritores hesitantes na resposta. Afinal, porque escrevem? O que as leva a escrever? Claro que, consciente ou inconscientemente, é uma pergunta que já se fizeram a si próprias. Dulce fala de um “desconforto com a realidade” como ponto de partida. “A minha ligação à realidade parecia-me insuficiente, faltava sempre qualquer coisa, sentia que me perdia, e acho que escrevo a partir dessa falha.”
Ironicamente, diz, escolheu o curso de licenciatura em Direito, uma área em que uma ligação muito racional à realidade é fundamental… “Escrevo ficção porque estava, e estou, à procura duma casa, de um lugar, um sítio de onde possa dizer que eu sou”, diz, por sua vez, Djaimilia, “como se os livros fossem esse lugar.” E vai mais longe: “Também escrevo para não enlouquecer, não sei se me conseguia manter sã se não escrevesse.”
Desse ponto de partida, as duas autoras chegaram a uma obra que, muitas vezes, tem um forte pendor autobiográfico. Isso é particularmente visível em O Retorno (2012), de Dulce Maria Cardoso, ancorado no período da descolonização, com a viagem de milhares de portugueses (como Dulce) de volta à “metrópole”, e em Esse Cabelo, a estreia de Djaimilia no romance, em 2015, que, curiosamente, também passa pelas viagens das ex-colónias para Lisboa, questionando identidades e comportamentos a partir do “cabelo crespo” de uma angolana (Djaimilia nasceu em Luanda, em 1982).
A propósito dessa transposição de realidades vividas para a literatura, Dulce fala do modo como se revive o sofrimento no processo de escrita, “com uma dor que parece maior do que a que foi vivida na altura, como se fosse depurada; sem o instinto de sobrevivência e a adrenalina do momento em que foi vivida sobra a sensação de injustiça.”
Já Djaimilia fala-nos dos livros como “excelentes caça-fantasmas”: “Posso reviver o sofrimento enquanto escrevo, mas depois de terminado o livro não volto ali, fica resolvido, nunca mais penso nele.” Isso leva a escritora a uma afirmação forte: “Desde que escrevo tenho vindo a resolver os maiores problemas da minha vida.”
Qual o lugar dos leitores nesses processos que parecem tão pessoais? Tanto Dulce como Djaimilia dizem que enquanto escrevem romances não pensam, de todo, nos leitores (já no caso de Dulce isso é diferente se falarmos das crónicas: “Aí tento tirar da realidade o que acho que vai interessar os leitores”).
Mas isso não significa que o leitor não seja uma peça fundamental em todo o processo. “Somos muito mais parecidos uns com outros do que, às vezes, pensamos; o que me toca, toca outros”, diz Djaimilia sobre a receção dos seus romances.
Dulce recorda que soube que o seu livro Eliete ajudou mesmo a “resolver um casamento, neste caso destruindo-o”: uma leitora encontrou na protagonista desse romance de 2018 (de que se aguarda a continuação) o impulso para decidir divorciar-se. “Não temos o poder de controlar o que as pessoas leem nos nossos livros”, dirá Djaimilia. E se isso, inicialmente, a assustava, hoje deixa-a “divertida”: “Pessoas de quadrantes políticos ou temperamentos diferentes podem ler os mesmo livros de forma muito diversas. Às vezes, penso: ‘que livro é que eles leram?!'”
Ao longo desta conversa sob o céu falso do Planetário, que durante todo o dia teve umas discretas nuvens num fundo escuro, Dulce e Djaimilia pareciam estar sempre em sintonia. Mas quando o tema foi a ideia de “literatura ativista” não afinaram totalmente pelo mesmo diapasão. Djaimilia afasta-se desse rótulo e objetivo: “É verdade que isso se vê muito hoje, política e arte misturada de forma exacerbada, mais do que na literatura até, talvez, nas artes performativas e visuais, mas tendo a desconfiar da arte ‘ativista’, não me agrada a ideia de haver razões pouco literárias para escrever livros…”.
Já Dulce, que sublinha que para si “tudo é político”, sente alguma nostalgia de um tempo (e o nome de Saramago vem à baila) em que os escritores tinham “causas”: “Hoje parece que estamos num eterno buffet de ideias, tornamo-nos muito calculistas, parece que queremos ir a todas, sem nos comprometermos.” Definindo-se a si própria como “caótica, desordenada e preguiçosa”, a escritora assume a sua incapacidade para organizar toda a vida (e obra) em nome de uma “causa.”
E, afinal, sendo o VISÃO Fest dedicado ao tema “Visão do Amanhã”, que futuro há para os livros, para a literatura? As duas escritoras põem a tónica das histórias nas nossas vidas. “Enquanto houver humanidade tal como a entendemos haverá sempre literatura, é a ficção que nos faz avançar, o suporte não interessa muito: livros, ecrãs ou algo que ainda se vai inventar…”. Djaimilia concorda: “A nossa necessidade de histórias é impossível de saciar.”