Exactamente às zero horas de 18 de Dezembro de 1961 – faz na próxima terça-feira 40 anos – 45 mil soldados regulares e 26 mil reservistas da União Indiana eram lançados pelo governo de Nova Deli, chefiado pelo pacifista e co-fundador do Movimento dos Países Não Alinhados Jawahrlal Nehru, contra os enclaves de Goa, Damão e Diu, que constituíam o Estado Português da Índia. Ao mesmo tempo, a aviação militar sobrevoava os territórios e vasos de guerra tomavam posições ao largo. A «jóia da coroa» das colónias portuguesas era defendida por escassos 3 500 homens com espingardas Kropatcheck de 1889, LeeEnfields de 1917 e Mausers dos anos 40. O velho aviso Afonso e Albuquerque navegava, entretanto, ao lago da costa.
Como era inevitável, a resistência à Operação Vijay durou escassas horas, e no dia 19 a União Indiana organizava uma parada da vitória em Pangim. Numa anexação considerada ilegal por Adriano Moreira (ler entrevista com o então ministro do Ultramar), cessara a presença portuguesa na Índia, velha de 463 anos.
Para o salazarismo, o «ano negro» terminara ainda pior do que começara (ler texto sobre 1961). Haviam perdido a vida na breve refrega 45 portugueses e 22 indianos. O Afonso de Albuquerque fora afundado por cruzadores indianos. Durante meses ficariam prisioneiros 3 500 militares portugueses (ler texto sobre os campos de concentração)
Não fora o holocausto que Salazar previra e desejara, ao enviar ao governador-geral Vassalo e Silva uma mensagem em que escrevia: «Não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos».
Os responsáveis militares, com o governador à cabeça, foram condenados (ler texto sobre Vassalo e Silva). Foi tal o sentimento de humilhação dos militares que a adesão de muitos oficiais ao 25 de Abril foi como que uma vindicta contra o regime que os maltratou.
No próprio ano da Revolução dos Cravos, a 9 de Setembro, um despacho de Costa Gomes nomeava uma comissão incumbida de rever os processos dos militares «malditos» que três meses depois seriam reabilitados e reintegrados. O reconhecimento português da soberania indiana sobre Goa, Damão e Diu data do derradeiro dia desse ano.
Já desde o início do conflito com a União Indiana pela posse de Goa, Damão e Diu (ler cronologia) que Nehru vinha sendo arvorado pela propaganda oficial à condição de vilão máximo. O seu título de «pandita», uma distinção honoríïïca que na Índia se atribui aos brâmanes eruditos, era pronunciado pelos locutores com requintes de desprezo, como se de um insulto se tratasse. E, nas escolas, as crianças, com ou sem farda de lusito, cantavam um hino patriótico cuja letra se reduzia ao simplismo quase minimalista de: «AAA, heróis de Dadrá/ EEE, lutar pela Fé/ III, Nagar-Aveli/ OOO, Goa não está só/ UUU, nada com Nehru».
CATIVEIRO
Reféns de Salazar
Não foram vitoriosos nem mortos, como desejou o ditador. E, nos campos de concentração, muitos dos 3 500 portugueses feitos prisioneiros durante a Operação Vijay sentiram-se reféns do Estado Novo
Uma expectativa incontida invadiu o grupo de oficiais quando o govemador-geral do Estado português da Índia, Vassalo e Silva, se atirou a um dos caixotes que tinham acabado de chegar via Carachi, Paquistão, num voo dos TAIP (Transportes Aéreos da Índia Portuguesa). A surpresa foi demolidora. Lisboa respondia literalmente ao urgente pedido de «chouriços», o que na linguagem cifrada convencionada com o Estado-Maior significava armas e munições antítanque e antiaéreas, para fazer frente à iminente invasão pelas tropas da União Indiana.
«Pedimos ‘chouriços’ e foi o que eles efectivamente mandaram», lamenta o hoje general Carlos Azeredo, que era em 1961 o oficial de ligação entre o govemador-geral e as forças de segurança. «Assim ficámos a saber que estávamos completamente abandonados, entregues à nossa sorte.» O pior estaria no entanto para vir. A queda de Goa, Damão e Diu processou-se em menos de 48 horas. À derrota, seguiu-se quase meio ano de cativeiro. Cerca 3 500 homens, entre eles vários civis, foram internados em quatro campos de detenção goeses – Alparqueiros, Navelim, Pondá e Forte da Aguada. Os chouriços, esses, constituíram a melhor refeição que Hernâni Mourão, um civil feito prisioneiro de guerra quando tinha 31 anos, se lembra de ter comido em cativeiro. «Chouriço com azeitonas», precisa com um sorriso nos lábios a que décadas de Lisboa não conseguiram roubar a pronúncia alentejana.
Da comida todos se lembram com alguma nitidez, apesar de, quatro décadas depois dos acontecimentos, as memórias já desfilarem lentas e turvas como as águas do rio Mandovi.
Para alimentar os prisioneiros, usavam-se os mantimentos encontrados nos depósitos da Manutenção Militar portuguesa. «Às tantas, só nos davam macarrão, grão, feijão e batata, tudo cozido e recozido. As sobras eram sempre aproveitadas e aumentadas», conta Azeredo, que conheceu as agruras do campo de Alparqueiros.
Carlos Alexandre Morais, na altura capitão, também não esqueceu um «caldo insípido onde nadavam uns pedaços de legumes», que em Navelim se confeccionava ao ar livre, a 30 ou 40 metros das latrinas rodeadas de moscas. Aliás, este campo havia de ser encerrado um mês depois da invasão de Goa por falta de condições, e os seus prisioneiros transferidos para Pondá.
«A estada num campo de prisioneiros é uma boa forma de combater a obesidade», ironiza Azeredo, que perdeu ali 20 quilos. Hernâni Mourão não sabe quanto peso deixou em Pondá, mas tem presente que, no início, conseguia transportar de cada vez dois dos quatro blocos sobre os quais colocara uma tábua para fazer uma cama e que, já mais para o fim, «nem com um podia».
Não foram apenas as camas que se improvisaram. A adversidade aguça o engenho. E se houve sítio onde nas últimas décadas o espírito português atingiu a sua plenitude, foi nos campos de prisioneiros de guerra da Índia. O «desenrascanço» era a palavra de ordem.
Num ápice se transformavam as barras cromadas de um Volkswagen em talheres. Até houve quem tivesse conseguido fazer entrar uma telefonia de dimensões razoáveis num dos campos, à revelia das autoridades militares. Transistores também os havia, dois ou três autorizados e os restantes clandestinos. Improvisava-se como se podia, a imaginação não tinha limites.
A nota de mil
É quando centenas de homens, atacados pelos mosquitos, se aconchegam costas com costas debaixo de um telheiro de lusalite, em noites difíceis de suportar por causa do frio, e isso lhes parece um luxo comparado com os primeiros dias em campos improvisados, que se revela o carácter das pessoas ou a falta dele.
Quem passou nesses dias por Navelim, Pondá, Alparqueiros ou Forte da Aguada conta mil e uma histórias de vileza ou generosidade. Uma das mais generosas é protagonizada por Eduardo Reis Pinto, então um soldado de 21 anos, ao encontrar uma nota de um conto de réis – «toda dobradinha», recorda. Pinto, que fora capturado sem um tostão no bolso, não quis o dinheiro para si e, contrariando alguns dos seus camaradas, decidiu comunicar o achado aos oficiais portugueses. Num instante se identificou o legítimo proprietário daquela pequena fortuna – no comércio autorizado nos campos pelas autoridades indianas, mil escudos davam para comprar dez latas de leite condensado – e a verba foi restituída.
Ao tomarem conhecimento do sucedido, os comandantes indianos dispensaram o soldado de trabalhos fora do campo – que algumas praças eram obrigadas a realizar, nomeadamente na reconstrução das pontes destruídas pelas tropas portuguesas em retirada.
Humano, demasiado humano
Como nos filmes? Uma espécie de Ponte do Rio Kwai à portuguesa? Ou, como diria Bertold Brecht, a «solidariedade dos corpos torturáveis»? «O ambiente de um campo de prisioneiros é semelhante em todo o lado. A natureza humana é tão estranha que às vezes sentimos saudades do ambiente de amizade e interajuda que havia», comenta Carlos Azeredo. «Partilhávamos tudo o que tínhamos», diz Eduardo Pinto.
Havia também o reverso da medalha.
A mesquinhez e o egoísmo. Carlos Morais conta no seu livro A Queda da Índia Portuguesa (Editorial Estampa) que houve quem, pela calada da noite, fosse beber o leite destinado aos doentes. E Azeredo lembra-se da existência, em Alparqueiros, de um good prisoner (bom prisioneiro) – um recluso cooperante ou colaboracionista, na gíria militar.
Com a alvorada às 6 da manhã, a primeira formatura às 7, e depois mais formaturas para a contagem de prisioneiros, os dias dilatavam-se sob um sol escaldante. Os corpos debilitados eram atormentados por moscas. «Havia desmaios à esquerda e à direita», conta Carlos Morais.
As afecções intestinais faziam parte do quotidiano. Esse era, aliás, o problema de saúde de maior relevo. Paulo Portela, médico convertido em oficial miliciano que a Pátria chamou a cumprir serviço na Índia, relata que os maiores problemas eram os que derivavam do excesso de população, da alimentação e das precárias condições sanitárias – o caldo ideal para a propagação de doenças contagiosas. «Felizmente, os militares tinham sido vacinados. E os indianos procederam, depois, a uma revacinação».
Manda o quê?
Contra o desalento não havia, porém, vacina possível. A ociosidade levava muitos a perderem-se em conjecturas e especulações sobre o regresso. Esmiuçavam-se os jornais que chegavam. As notícias, a propaganda, a desinformação e os boatos tinham efeitos perniciosos.
Curiosamente, um dos maiores factores de desassossego eram os programas radiofónicos de Lisboa destinados aos prisioneiros. O programa do Estado-Maior do Exército intitulado É Portugal que Manda revelara-se nefasto para a moral das tropas. Numa das suas emissões, esclarecia que, ao contrário do que muitos supunham, nunca tinha havido a intenção de os fuzilar os militares quando regressassem. O sentimento entre os oficiais cativos é o de que o programa procurava inculcar-lhes as culpas relativamente ao sucedido entre 18 e 19 de Dezembro de 1961.
O programa estava de acordo com a linha seguida por Salazar no tratamento da questão dos prisioneiros de Goa. A altivez do regime, a atitude do derrotado a arvorar-se em vitorioso e a inflexibilidade prolongaram desnecessariamente a presença dos 3 500 portugueses nos campos de prisioneiros indianos, cujos dias se diluíam numa ansiedade permanente.
À noite, havia quem em surdina idealizasse – ou pelo menos sonhasse – planos de fuga. Até porque, «enquanto prisioneiros de guerra, a nossa obrigação era fugir, para nos reunirmos às nossas tropas», diz Azeredo.
Mas para onde? Para poente havia o Mar Arábico, para oriente, sul e norte, o território hostil da índia. Além disso, piores que o conflito entre a obrigação moral e a impossibilidade geográfica eram as ordens vindas de Lisboa. A dada altura, chegou uma comunicação via rádio anunciando que era determinantemente proibido abandonar os campos de prisioneiros.
«Deve ter sido o único caso na história militar em que um país envolvido em dois conflitos – Goa e Angola – e tendo militares seus feitos prisioneiros, os proibiu de abandonar o cativeiro», comenta Carlos Azeredo. Mesmo assim, registaram-se duas tentativas. Uma em Alparqueiros e outra em Pondá. Em ambos os casos, os militares envolvidos pagaram cara a sua ousadia.
Nehru com pressa, Salazar obstinado
As negociações com vista ao repatriamento só se iniciaram lá para meados de Janeiro de 1962, com contactos estabelecidos entre o Brasil, que representava Portugal, e a República Árabe Unida (Egipto e Síria), pela parte indiana. Nova Deli tinha pressa e apontava a libertação para Fevereiro desse ano.
Mas, obstinadamente, o regime português colocava dificuldades. A questão arrastou-se durante quatro longos meses, sem que se avançasse um milímetro. O Estado Novo impôs como condição a saída simultânea dos indianos – civis, entenda-se – que foram detidos nas colónias portuguesas em África e internados também em campos de concentração.
Para a Índia, o problema era simples: se Lisboa queria expulsar os indianos das suas colónias bastava recusar-lhes a renovação de vistos de residência. Na capital portuguesa, o velho ditador insistia: os barcos que iriam transportar os cidadãos indianos serviriam de transporte no repatriamento dos portugueses.
«Tínhamos a sensação de que éramos mantidos como reféns, não pêlos indianos, mas pelo nosso próprio Governo», salienta Carlos Morais.
A luz ao fundo do túnel só começaria a surgir na segunda quinzena de Março.
A 23, o primeiro-ministro Nehru dava sinais de ter perdido a paciência com o seu homólogo português. No Parlamento de Nova Deli, declarou que, se houvesse mais atrasos no repatriamento, os portugueses seriam transferidos para campos fora do território de Goa. E reiterava que os prisioneiros portugueses e os indianos detidos em Moçambique e Angola eram questões diferentes e separadas. Num despacho desse dia, a Agência Reuters dava conta de que «Nehru concluiu dizendo que os portugueses podem partir em qualquer momento. Não queremos nada em troca».
As autoridades indianas não perderam tempo e, horas depois, os portugueses foram informados de que, face à situação de impasse criada por Lisboa, a Índia decidira dar a todos os prisioneiros militares e civis a possibilidade de abandonarem os campos, desde que dispusessem do dinheiro para as viagens.
Nos campos, a notícia provocou agitação: a liberdade era oferecida incondicionalmente. Para os civis, o caso afigurava-se relativamente simples. No que diz respeito aos militares, a questão ganhou contornos mais bizantinos. As regras não permitiam que se tomassem decisões individuais. Havia que aguardar ordens do Governo.
Entretanto, pela mão de Adriano Moreira, então ministro do Ultramar, tinha entrado em Goa Jorge Jardim, uma figura misteriosa que se envolveu noutros casos do seu tempo que não se resolviam através dos canais diplomáticos normais. Jardim apareceu a 22 de Fevereiro no quartel de Pondá, mesmo ao lado do campo de prisioneiros, e conseguiu desbloquear a situação de três jornalistas da RTP, que, no dia seguinte, partiram rumo à Metrópole. Mas ainda era cedo para o plano de repatriamento de Jardim se executar.
Enxovalhados
O processo só começaria a avançar a um ritmo acelerado depois do discurso de Nehru, com o regresso dos primeiros civis detidos a efectuar-se em Abril e o dos militares a iniciar-se a 2 de Maio.
O cativeiro terminou, mas não a saga dos militares a quem Salazar colocara o dilema de «vitoriosos ou mortos». Foram enxovalhados pelo regime, que lhes negou os meios de defesa, para depois os tratar como cobardes.
«O navio que nos trouxe de regresso chegou à barra do Tejo por volta das 4 horas e ficou parado. O desembarque só ocorreu dez horas depois», conta Azeredo. No cais, aguardava-os a Polícia Militar, que lhes apontava pistolas-metralhadoras. «Quando perguntámos para que era todo aquele aparato, responderam: ‘Para vos defender da ira popular, que vos considera cobardes’.» Posteriormente, houve até notas confidenciais enviadas para os quartéis proibindo que entre os oficiais que chegavam e os que se encontravam na Metrópole houvesse conversas sobre o que se tinha passado em Goa.
Mas o regime não se dava satisfeito com as humilhações quotidianas. O Governo instaurou um inquérito para apurar responsabilidades na perda da Índia. Os militares haviam de ter um castigo exemplar. Sem possibilidade de se defenderem, muitos foram expulsos das Forças Armadas, onde só depois do 25 de Abril foram reintegrados. Outros enviados para comissões nas zonas mais quentes da guerra colonial africana.
Houve quem tivesse passado pela experiência e hoje se recusa a falar do assunto. É que, por muito selectiva que seja a memória, certos vestígios só dificilmente se apagam em toda uma vida.
«Foram coisas que ficaram vivas para sempre. Só morrem connosco», diz o general Carlos Azeredo. Com efeito, mesmo quatro décadas depois, há amargos de boca que incomodam ao falar.
FRANCISCO GALOPE