Batem leve, levemente como quem chama por nós. Lentamente fomos saindo daquele limbo do sono em que a realidade se interpõe ao sonho. Devaj (vindo de deus) e a irmã Aruna (madrugada) batiam na porta do nosso quarto despertando-nos dum sono pesado. Ao nosso comando de “come in”, irromperam quarto adentro e em uníssono cumprimentaram-nos com um sonoro e alegre “Happy Diwali!” Não, ainda não estamos na Índia mas a fronteira física e cultural é já muito ténue neste recanto do planeta onde a transição do mundo budista para o hinduísta é suave e gradual.
Tivemos a sorte da nossa primeira visita ao Nepal (we hope!) coincidir com o festival do Tihar, a segunda maior festa do país e versão nacional do Divali indiano. Bem, não foi propriamente uma coincidência, fizemos as contas para bater certo. Esperavam-nos cinco dias de imersão cultural nunca antes experimentados.
Estávamos em Katmandu há apenas umas horas mas os nossos anfitriões recebiam-nos como amigos de longa data. Arranjámo-nos e fomos tomar o pequeno almoço com a família de etnia newari. Sobre pratos de inox do tamanho de travessas, esperava-nos um banquete composto por arroz, dahl (sopa de lentilhas), três caris de vegetais e uma espécie de arroz doce para adoçar o dente. Ainda não contentes com a fartura, umas tijelas de frutas descascadas e um cesto de pão foram postos na mesa enquanto a matriarca servia o fumegante chá com leite. No Nepal isto é literalmente um banquete, já que a maioria das pessoas pouco mais tem para comer que um pão e o chá com leite. As restantes refeições não vieram a diferir muito da primeira, o que não nos incomodou minimamente: comida enriquecida com o sabor de especiarias, deixa-nos sempre de água na boca.
Enquanto nos encaminhamos para a Durbar Square, o coração duma cidade onde a tradição ainda faz frente à entrada invasiva do progresso, fomos apreciando as típicas janelas e varandas ricamente ornamentadas em madeira esculpida – um traço inconfundível do estilo arquitetónico do Vale de Katmandu. Na praça, alinham-se dezenas de templos, talvez a praça com o maior número de templos reunidos no mesmo lugar que já tivemos oportunidade de ver. Grupos de mulheres enfiam metros e metros de calêndulas em grinaldas, homens embrulham comida em parras e os rapazinhos vendem pós coloridos de cores berrantes em pacotinhos de papel de jornal. São as oferendas para a puja, o ritual de oração e adoração hindu. À noite é que tomamos o pulso à magnitude desta celebração. Quando saímos à rua assistimos aos preparativos da festa. Cada porta, sem exceção, é decoradas com grinaldas de flores, desenhos coloridos no chão da entrada e o máximo possível de lamparinas de manteiga que, pacientemente, vão sendo alumiadas. Afinal, não é à toa de o Divali é conhecido como o “festival das luzes” e é à noite que ganha todo o seu esplendor aos sons enérgicos das flautas bansari, dos tambores madal e dos címbalos.
Durante os dias seguintes, vimos cães com colares de calêndulas dependurados ao pescoço, viaturas decoradas com grinaldas, vacas a comerem doses generosas de comidas nas praças e, no último dia, os rapazes exibindo orgulhosos as bindi (pintas na testa) primorosamente pintadas pelas irmãs.
O Nepal exerce um magnetismo arrojado sobre os viajantes e é, provavelmente, o nirvana para os amantes da escalada de montanha.
De casa levávamos o sonho de abrir caminho pelos bazares apinhados de Kathmandu, assistir ao nascer do sol sobre os templos e palácios de Patan e Bhaktapur, acender uma lamparina de manteiga no templo de Swayambhunath, juntarmo-nos aos peregrinos budistas numa volta ao redor de Boudhanath a estupa mais sagrada para os tibetanos, receber a bênção dum sacerdote hindu no Pashupatinath na margem do rio sagrado. Mas a realidade foi muito além das expectativas. Depois de Katmandu ainda respondemos ao grito da selva em Chitwan onde fomos à “caça” dos rinocerontes no dorso dum elefante, e tomámos o gosto à exigência do trekking em Pokhara.
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