Foi só pelo entusiasmo do resto do grupo que não contrariei a decisão da maioria de alugar um carro. Explico melhor: não se alugam carros no Sudeste Asiático, nem na Índia, nem em África, nem na América Central. Alugam-se condutores locais. Eles que arranjem o carro e que o conduzam.
Mas éramos um grupo – aliás, uma multidão, para os padrões de quem está habituado a viajar sozinho. Éramos quatro. Lá alugámos o todo-terreno, como agora se diz.
A nossa intenção era deixar para trás a ilha de Bali e passar uns dias na ilha de Lombok.
Além de termos prescindido de condutor, ainda por cima íamos andar a saltar de ilha em ilha. Não é assim como ir à Sardenha ou atravessar o canal da Mancha.
Estávamos a conduzir numa das ilhas mais densamente habitadas do mundo, e parecia-nos que a população se tinha juntado toda na berma da estrada por onde circulávamos. Com os seus filhos. E os seus animais. E dos seus produtos para venda.
A média horária, nestas condições, seria de uns bons 40 km por hora, mas apenas um experiente condutor local a alcançava. Nós, ficámo-nos por metade dessa velocidade.
Chegámos ao cais de embarque às 9 da noite, mas perdemos uma hora a tentar convencer as autoridades a não nos multarem por não possuirmos um documento que, tanto eles como nós, sabíamos bem que nem sequer existe. Outra situação que um experiente condutor local teria rapidamente resolvido. Pagando a “luva” às autoridades.
O ferry demora a melhor parte da noite para atravessar os 25 quilómetros do estreito de Lombok. Marcámos passagem na classe “camarote”. Pagámos mais caro.
Afinal, nem sequer existia. A tradução correta não seria “camarote” mas sim classe “deitado”. As alternativas eram os bancos de madeira, classe “sentado”, ou apoiar o tronco à amurada, sem classe. Daí, a ideia de pagarmos por um upgrade a que um bilhete “passageiros com carro”, só por si, não dava direito. Um funcionário com ar cansado levou-nos até um salão pejado de colchões de campismo, tipo uma aula de ginástica numa casa do povo. Apontou, com um gesto vago, como quem diz: “Escolham um para cada um, e deitem-se aí.” Pretendíamos encontrar em Lombok o que Bali perdera depois de 40 anos de turismo e desenvolvimento descontrolado: um lugar primordial. Mas a diferença entre as duas ilhas não era apenas no progresso material, atravessávamos uma das fronteiras biogeográficas mais extraordinárias do mundo. Apenas 25 quilómetros separam as duas ilhas, mas o estreito funciona como um formidável limes planetário, onde terminam, bruscamente, dois ecossistemas inconciliáveis: do lado de Bali, a fauna e a flora da Ásia; do lado de Lombok, a fauna e a flora da Austrália.
Foi Alfred Russel Wallace, o cientista viajante, quem, em 1859, compreendeu que este estreito marcava, de forma contundente, a divisão biológica entre os dois continentes.
Hoje, sabemos explicá-lo. Durante as grandes glaciações do passado, quando o nível do mar desceu 120 metros, Bali, Java Sumatra e a Ásia eram um único continente; por sua vez, Lombok, Flores e Timor ligavam-se à Austrália. Mas o estreito de Lombok, com 250 metros de profundidade, nunca ficou “a seco”. Manteve-se uma linha de separação intransponível: a linha Wallace.
Era essa a linha que atravessávamos nessa noite. Lombok revelou-se tudo o que tínhamos sonhado: a antítese de Bali, primordial e pouco visitada. Mas, entretanto, passaram muitos anos. Quem sabe como estarão hoje as praias desertas, as paisagens despojadas, o horizonte limpo que visitámos? Talvez a linha Wallace continue a sua missão de fronteira intransponível, desta vez travando a ganância e o desenvolvimento descontrolado que têm vindo a desfigurar os lugares mais bonitos do mundo.