O autocarro desde Joanesburgo sai às 8 da manhã para Maputo – entre tempos de paragem noutras cidades ao longo do percurso e a travessia da fronteira de Ressano Garcia, chego a Maputo já de noite. Fico plantado numa esquina à espera de um amigo de amigo de outros amigos. Não sei sequer se existe, mas se existir, chama-se Henrique.
O que ficou combinado foi uma boleia com o Henrique até um promontório mítico para praticantes de surf, onde quebra uma onda secreta, de qualidade mundial e de difícil acesso para viajantes solitários, daí melhor apoiar-me na experiência e na viatura de quem sabe. O Henrique, se existe, sabe.
Por ironia do destino ou, quem sabe, por malícia das sinergias que a História tece, tanto Portugal como as suas ex-colónias são excelentes destinos para o surf. A diferença é que na (ex) metrópole as ondas estão à distância de um parque de estacionamento.
Já em Angola e Moçambique, a logística de chegar à praia envolve guias locais, veículos todo-terreno, provisões, equipamentos de outdoor e um espírito desinibido e aventureiro. Tal como fiz há uns anos em Angola, socorro-me agora da ajuda de um português expatriado para chegar até às ondas. Henrique, se existe, imigrou para Moçambique não apenas pelo trabalho mas também pelo surf. Provavelmente até na ordem contrária de prioridades.
A noite cai suavemente sobre esta cidade que me faz pensar no Portugal que eu nunca tive, no português que nunca fui.
É uma cidade bonita, apesar do degrado e da incúria e da miséria. Uma cidade que desce para o mar, que permite sempre um tom de azul no fundo do olhar, um pouco como Lisboa com o Tejo. No entanto, de todas as cidades coloniais portuguesas que visitei, é aquela que menos me recorda Portugal.
Maputo é demasiado recente e demasiado airosa, demasiado planificada e escorreita para recordar uma cidade portuguesa.
O que o carácter e a fisionomia urbana de Maputo me recorda, na brisa suave do fim da tarde, é um Portugal que ficou por acontecer, uma possibilidade de evolução paralela que se perdeu nas ramificações do destino. Tento imaginar uma outra História pátria que teria resultado de uma aproximação mais humilde, menos aguerrida, às culturas do Índico, uma outra miscigenação, uma outra abertura de espírito aos povos e às religiões que íamos encontrando.
Só Moçambique poderia evocar esta dimensão paralela e perdida da História de Portugal, só aqui tivemos a porta aberta para esse oceano Índico que durante séculos promoveu comércio, provocou diásporas, acomodou a diferença, ensinou a Humanidade a lidar com o Outro. Só aqui poderíamos ter sido Outros, diferentes.
Angola, pelo contrário, que portas nos teria jamais aberto? Em que mundos nos teria introduzido? O mesmo Atlântico cinzento e tenebroso que já conhecíamos; um planalto esquecido pelos fluxos da História; uma cultura tribal e fratricida que se fechava em si própria e que do exterior só conheceu agressões e esclavagismo.
Não é por acaso que Moçambique é solar e colorida e mediterrânica como só a orla do Índico o consegue ser; enquanto que Angola é atlântica e sombria, envolta em brumas matinais que não conseguem dar alegria a um litoral árido e estéril. Não é por acaso que Moçambique é banhada por uma corrente tépida, transparente e tropical; enquanto que em Angola passa uma das correntes mais gélidas, escuras e densas do mundo. Não é por acaso que a navegação do oceano Índico é previsível, suave e de monção; enquanto que a do Atlântico é turbulenta, irregular e traiçoeira. E o estado do mar não será alheio à percepção que o resto do mundo tem destes dois países – benevolência para com o primeiro, comiseração para com o segundo.
Ou talvez esta seja apenas a opinião de quem olhou para os dois países a partir da crista de uma onda, deslizando sobre uma prancha no meio do mar, em solidão serena e reflectiva, ao largo.