Fiquei sem compreender o título: Persépolis – História de uma Infância. Aliás, o que eu não compreendi foi a palavra Persépolis, a antiga capital do império persa. Tudo o resto fazia sentido – o célebre e lindíssimo livro da iraniana Marjane Satrapi é, de facto, a autobiografia da sua infância e adolescência em Teerão, sob um dos regimes mais exaltados e repressivos do mundo: o regime iraniano.
Escolho os termos com cuidado, pois uma coisa é o Irão, outra é o regime que o governa. Os regimes caem, os povos perduram.
Talvez a palavra Persépolis no título seja um lembrete, uma chamada de atenção para duas realidades temporais opostas: o anonimato sombrio de uma adolescência, durante um regime efémero; e, por contraposição, a perenidade luminosa da civilização onde essa adolescência se desenrola: a civilização persa.
Não é difícil colocar a Pérsia no centro do mundo. Basta organizá-lo segundo linhas culturais de longa duração que somente nos últimos dois ou três séculos, um pedaço de tempo ínfimo na História da Humanidade, perderam a predominância global. Antes disso, sempre foi assim: a China a oriente, a Índia a sul, a Europa a ocidente; no centro desta divisão colocamos a Pérsia. E o primeiro império que a Pérsia deu ao mundo, o Aqueménida, no século V a.C., estendia-se, de facto, até às fronteiras da atual Índia, da atual China, da atual Europa. Foi, em termos demográficos, o maior império de sempre: quase 50% da população mundial da época estava subordinada à Pérsia.
E no interior da Pérsia, onde colocamos a sua capital? Esta deve ter sido a pergunta que fizeram os imperadores persas quando compreenderam que, no centro do mundo, existia um império, o seu. As cidades mais importantes, e as mais óbvias, eram também as mais expostas e facilmente localizáveis por um exército inimigo: Susa, Ecbatana ou Babilónia. Todas elas pouco fiáveis, também, pois tinham sido anexadas ao longo da formação do império. Não eram originais, continham em si a semente de futuras rebeliões. Persépolis era nova e sem malícia. Darius, o Grande, filho de Xerxes e descendente de Cyrus, ergueu, em 550 a.C., esta cidade que não era inferior a nenhuma outra que a Antiguidade tenha alguma vez conhecido.
Escondida no planalto central iraniano, frequentada apenas pelos sátrapas fiéis ao poder, manteve-se um enigma desconcertante para os exércitos inimigos ao longo das décadas. O próprio Alexandre Magno, que a destruiu sem remorso em 330 a.C., pouco sabia da sua localização e dos tesouros que possuía. Em que pensamos hoje, ao olhar do cimo da colina para as pungentes e magníficas ruínas de Persépolis? Nas voltas que a História dá – isso é imediato. E na forma como os vencedores reescrevem essa mesma História.
Pensamos que, com Alexandre Magno, os bárbaros fomos nós, os ocidentais, mas nenhum ocidental se lembra de criminalizar Alexandre pela forma como assassinou esta cidade e tudo o que ela representava.
Nem nenhum ocidental se recorda de que mantemos uma dívida de gratidão por pagar a esta civilização que sempre foi o reflexo da nossa, o lado de trás do espelho, a outra face da mesma moeda.
Com um pouco mais de ironia, pensamos que Alexandre Magno decidiu queimar Persépolis não como sinal político ou militar, mas na sequência de uma orgia desregrada em que uma cortesã, Thayss, se lembrou de atear a primeira labareda e convidou os bacantes a fazer o mesmo.
E vinte e tal séculos depois, enquanto a sociedade iraniana enfrenta a modernidade com recato, parcimónia materialista e sentido de família; os valores morais do Ocidente desagregam-se no hedonismo egoísta, na ignorância autoimposta, na ordinarice dos reality shows, no autismo das amizades virtuais, num quotidiano de bulimia consumista. As voltas que a História dá: agora, ateamos as labaredas nos nossos próprios palácios.