Quando era miúdo, acreditava que as coisas tinham alma. Que a bicicleta se dava pelo nome, que o pinheiro manso me desafiava a chegar ao último galho, que a colher redondinha da sopa gostava de ser escolhida entre todas as outras mais oblongas, que o vento sabia correr mais do que eu.
Hoje, ainda acredito. E agora acredito noutra coisa: que também os lugares têm alma. Será por ter viajado tanto, nos anos, e ter colecionado pontos do planisfério como quem coleciona selos ou moedas.
Na filatelia ou na numismática, é sabido, algumas peças têm imenso valor, outras são pouco ambicionadas. E outras, ainda, têm um valor subjetivo.
Também é assim com os lugares da minha lista. Alguns são óbvios, consensuais, ambicionados por qualquer viajante independentemente das suas preferências, como uma travessia do Estreito de Gibraltar ou um chá na Garganta do Tigre que Salta. Outros são dispensáveis, apenas o carinho pessoal os elege, penso por exemplo na anónima catedral românica de Fidenza, cuja comovente escultura de peregrinos medievais caminhando para Roma me emocionou, na sua tosca simplicidade e me transmitiu, durante uns minutos, uma espécie de abnegação já muito parecida com a felicidade total.
E outros lugares trazem, no seu valor, uma boa dose de subjetividade.
Um exemplo. Sagres é um lugar poderoso para os portugueses, pois simboliza um desígnio expansionista que mudou a identidade não apenas do nosso país mas de toda a Europa; mas a um servo, Sagres pouco dirá. Da mesma maneira, os campos da batalha do Kosovo são um lugar poderoso para um sérvio, pois o sacrifício de milhares de soldados travou o avanço otomano sobre a Europa e impediu que hoje sejamos todos muçulmanos; mas a um português, essa batalha pouco dirá.
Um sérvio poderá argumentar que se não era Sagres era qualquer outra ponta de terra lançada pelo mar adentro, na Cornualha ou na Bretanha ou na Andaluzia, que iria simbolizar a aventura europeia dos Descobrimentos; e um português poderá contra-argumentar que se não era o Kosovo, era o curso do Danúbio ou o golfo de Lepanto ou a montanha de Harsany ou qualquer outro impedimento geográfico que faria de fronteira entre as duas maiores religiões monoteístas da Humanidade.
Talvez um finlandês, olhando com uma perspetiva distante para ambos os lugares e os eventos que evocam, saiba relativizar a importância de cada um no Universo.
Acredito que os lugares têm alma, uma reverberação que derrama para as pessoas que os habitam. Ou será o contrário? Serão as pessoas que emprestam aos lugares a sua essência? Será a luz, a brisa, a latitude temperada, as colinas sinuosas de arroz vivo que fazem felizes os habitantes de Bali? Ou é a serenidade mística e simples que eles trazem dentro si que nos sugere que Bali é um lugar feliz? Pouco importa qual das duas possibilidades estão corretas, se calhar ambas.
Importa, sim, o que os lugares deixam em nós quando os atravessamos. Deixam uma consciência de termos sido tocados por eles. Lugares no tempo, lições da História, a chave geográfica das vias dos destinos do mundo. E tal como o finlandês que olha para Sagres e para o Kosovo com o mesmo distanciamento, também nós ganhamos perspetiva sobre a ampulheta da eternidade e sobre o grão de areia que é a nossa vida nela.