Estava só a pensar nesta coisa que me pedem sempre para comentar, da diferença entre turista e viajante, que o turista vai de férias com os dias contados e o viajante não sabe quando regressa; e que o viajante tem uma profundidade de perspectiva e de interesse cultural, tipo, vai para crescer e aprender com a viagem, e já o turista não, esse vai para se divertir.
E estava a pensar nessa cena do
gap year, que nem é moda, é comportamento de massas, porque se um miúdo for à procura de emprego e não levar no
curriculum um
gap year, se saiu da universidade e não tirou um ano para viajar, nem o chamam para uma entrevista de emprego, isto lá fora, claro mas é por andarem um ano a viajar que ficam menos turistas, mais viajantes? Compram o mesmo bilhete
Round-the-world, viajam pelos mesmos sítios, seguem as indicações dos mesmos guias Lonely Planet, fazem as mesmas actividades radicais, reencontram-se todos no outro lado do mundo e o que é que aprenderam com a viagem, se foi o mesmo que ter ficado em casa?
Agora conto-te uma história que se passou com um amigo de um amigo, e que foi um bocado triste mas a vida é assim, esse amigo, o Carlo, que me foi apresentado pelo Marcello tinham sido colegas no liceu, o Marcello era professor de História da Arte e o Carlo era de Filosofia, já ambos reformados, estou a fazer contas para ver que idade é que tinham nessa altura, aí uns setenta e picos, a diferença é que o Marcello estava rijo como um cepo, andávamos sempre de um lado para o outro, nos museus de Itália e da Europa e nos arranha-céus de Chicago e Berlim, enquanto o Carletto nunca tinha saído de Chiavari, todo curvo e trôpego com o cestinho dos legumes a chegar do mercado, era a viagem dele, tinha uma espécie de doença, agorafobia, que é o pavor de abandonar o território do dia-a-dia, digo eu, porque no dicionário explica melhor, até te digo de uma forma ainda mais simples, agorafobia é ter medo de viajar, e o Carletto era assim.
Um dia ele soube que em Paris iam fazer uma super-retrospectiva de Rotko, dessas que acontecem de três em três décadas, iam recolher tudo o que ele pintou e juntar num só espaço, eu nunca tinha ouvido falar de Rotko, mas o Marcello disse que era fundamental eu conhecê-lo e que organizasse a viagem para irmos os três a Paris, que o Carletto era obcecado com o Rotko e que com uma ocasião daquelas até superava o pavor de viajar e lá fomos os três e ele deu-se bem e tomou uns comprimidos antes de apanharmos o nocturno em Turim e dormiu toda noite, enfim, já que saciara o vício de ver os quadros do Rotko ao vivo, porque a pintura tem essa coisa, não serve de nada estares a ver uma reprodução num livro da Taschen, então no caso do Rotko não serve mesmo de nada porque estamos a falar de telas de dois metros por três, o efeito está na dimensão e uma página do livro não a tem, olhas para a página e vês um borrão desfocado e aquilo não te diz nada enquanto que no caso do museu sentas-te num banco em frente duma parede inteira ocupada por um Rotko e parece que aquilo está a movimentar-se na tua direção e engloba-te como uma jiboia e vai-te mexer em estilhaços da tua alma que não sabias que tinhas dentro de ti, e foi por isso que o Carletto quis mesmo ir a Paris e depois, e agora é a parte triste, achou que havia limites para a agorafobia e pediu-me para o levar ao Alhambra, a sua especialização era a Filosofia Árabe, e esse era mesmo o sonho de uma vida, visitar o Alhambra, sabia tudo o que há para saber sobre o palácio e por fim ia tocá-lo com as mãos, olhas para uma fotografia do Alhambra e é como um quadro do Rotko reproduzido num livro, só vês um borrão, um rascunho, uma caricatura da realidade.
E assim eu lá comecei a tranquilizá-lo com os preparativos, a partilhar as opções de transportes e hotéis, o que é que preferes, marco este ou aquele, quantos dias queres estar fora, assim a passar-lhe a organização da viagem, é essa a cena dos medos, tens que enfrentá-los, e eu disse-lhe “ainda ficas curado da agorafobia”, tinha confiança com ele porque estava a bater ao computador uma sua tese que ele queria ver publicada antes de morrer, estava doente e sabia que não tinha muito tempo, a tese era sobre o Gulliver, também te digo, só mesmo um filósofo para sacar tantos significados de um livro sobre um náufrago numa ilha de homens do tamanho de uma unha que toda a gente remete para a prateleira das crianças e afinal vais a ver e tens ali uma crítica social demolidora, mas era essa a parte triste é que ele morreu antes de irmos ao Alhambra e não é para ser piegas com a sua memória mas acho que ele foi mais viajante na viagem que nunca fez ao Alhambra do que qualquer um de nós a viajar três meses pela Patagónia ou um ano pelos mares do Sul.