- Clique para ler o GUIA DO VIAJANTE: o que saber antes de viajar, onde dormir, onde comer, o que fazer
O Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses tem o tamanho da cidade de São Paulo e está rodeado por quatro municípios: Humberto de Campos, Primeira Cruz, Santo Amaro e Barreirinhas. Dos quatro, o terceiro é o mais próximo mas é no último que encontramos as melhores infra-estruturas para receber os visitantes. De São Luís, capital do Maranhão, a Barreirinhas pode-se ir de avião (50 minutos) ou de carro. Apesar da distância de 260 km, a viagem em automóvel dura cerca de 4 horas. Tudo devido aos inúmeros quebra-molas (lombas) que encontramos ao longo do trajecto. No total são 74. Cada um representa simbolicamente uma morte, pois foram construídos pela população que vive ao lado da estrada como forma de protesto após um atropelamento. Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Em Barreirinhas, uma duna, tombada pelo Estado, domina a paisagem, principalmente quando nela subimos para ver o rio Preguiça, que, de pachorrento, não tem nada, já que trabalha de seis em seis horas, enchendo e vazando as margens litorâneas, limitando deste modo a vida de tudo e todos. Barreirinhas, com 13 mil habitantes no centro e 45 mil contando com a zona rural, é uma típica cidade do interior brasileiro, com uma praça central, uma igreja que reúne os fiéis (embora os espaços evangélicos estejam a crescer) e o comércio a centrar as atenções na rua principal. Durante o dia o barulho é por vezes ensurdecedor, com cada estabelecimento a chamar os clientes através de caixas de som, inclusive recorrendo a carros e bicicletas (a denominada bikesom). Em Barreirinhas a figura da cidade não é no entanto o prefeito, o médico ou o padre, mas Fred, “o maluco da cidade”. Seja de manhã ou à tarde, dificilmente esta personagem passará despercebida, já que do nada envia um grito para os ares ou para uma pessoa qualquer, soltando o riso aos locais, que já conhecem o seu modo de atuar, e provocando um susto na vítima. “Toda a cidade tem um louco e o Fred é o nosso. Toma cachaça de manhã à noite”, afirma, entre risos, Jony Gomes da Silva, conhecido por todos como J. Júnior, 39 anos, presidente da Cooperativa de Condutores de Visitantes e Monitores Ambientais, criada em 2010. Júnior foi um dos primeiros guias dos Lençóis Maranhenses e hoje luta pela dignificação da profissão, sendo por isso um dos nomes mais respeitados da região. Com uns olhos claros cristalinos e feições indígenas e negras, Júnior ainda hoje se lembra da primeira vez que viu “a beleza em estado puro”. Tudo aconteceu quando os lençóis ainda não eram os lençóis, quando o local era praticamente virgem e isolado. Convidado por um amigo para dormir na sua casa junto das areias brancas, até aí desconhecidas pelo guia, Júnior e mais quatro amigos partiram a pé de Barreirinhas durante a madrugada. Perderam-se e acabaram por demorar 11 horas para alcançarem o seu destino (levariam cerca de oito se não se tivessem enganado). Extenuados, tiveram de subir ainda uma duna para ver a paisagem, a mesma duna que hoje tem uma corda para ajudar os turistas a subirem, não sendo recomendada para pessoas mais idosas devido ao seu declive. “Quando cheguei lá em cima não me contive e chorei com a beleza dos Lençóis Maranhenses. Morava ali perto e não imaginava que existia aquilo. Fiz questão de dormir ali mesmo, debaixo de um céu esplendoroso e uma brisa aconchegante.” Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Essa visão ainda a vemos nos olhos de Júnior, que transmite toda a sua paixão pelo lençóis, um local que felizmente é hoje parque nacional. O guia recorda que a Petrobrás fez há alguns anos perfurações de petróleo na região e felizmente o ouro negro não estava maduro para ser retirado das profundezas da terra, caso contrário dificilmente teríamos nos nossos dias os Lençóis Maranhenses. A empresa petrolífera tentou assegurar os terrenos para uma futura exploração, “mas dificilmente vai conseguir nos dias de hoje”, acredita Júnior, que revela ser possível atravessar este incrível cenário a pé. “São 21 horas de caminhada de uma ponta a outra. No primeiro dia saímos por volta das 4 da manhã e podemos andar entre nove e 12 horas. Faz-se o trajecto em dois ou em três dias, depende da forma física das pessoas. Mas, definitivamente, não é indicado para todos.” O guia diz também que alguns indivíduos arriscam e vão passear sozinhos pelas dunas, sem ajuda. Raramente acabam sem pedir o GPS local: “Gente Pedindo Socorro”. Nos Lençóis Maranhenses a paisagem parece sempre a mesma, um deserto de areia branca povoada de lagoas aqui e ali, mas engana. É muito fácil alguém se perder, já que os pontos de orientação são praticamente nulos para os aventureiros. “A verdade é que o caminho nunca é igual de um ano para outro devido ao vento, que destrói e forma novas dunas. As caminhadas são por isso sempre diferentes. Os lençóis são um labirinto, as dunas mudam constantemente.” Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. E são as dunas que fazem com que as populações que vivem nas margens do rio Preguiça próximas do parque nacional tenham de refazer a sua casa todos os anos, por vezes por duas vezes ao ano. Em Vassouras, por exemplo, a família de D. Graça, 12 pessoas, entre elas crianças de colo e de 3 e 4 anos, está de mudança para breve. “Não somos nós que mudamos, mas as dunas. O vento de setembro a dezembro é quem manda no nosso destino.” D. Graça e os seus procuram estar sempre junto ao rio Preguiça, oferecendo aos turistas bebidas e comidas, assim como Nalberto, 52 anos, e Ana Dias, 46, casados há 30 anos. Também já foram nómadas, mas conseguiram montar a Tenda dos Macacos junto a uma vegetação que protege da areia, o que lhes permite ficar por mais anos no mesmo local. Bem-dispostos, percebe-se de imediato quem veste as calças no local, no caso Ana Dias, que, um dia, teve a ideia de vender água de coco, refrigerantes, água e cerveja aos turistas. “Trouxe 70 cocos, 24 águas, cervejas e refrigerantes. Vendeu tudo num dia”, salienta o marido. Regressaram no dia seguinte, e no outro, na outra semana, durante todo o mês e acabaram por ficar todo o ano. A filha partiu há 11 anos para São Paulo depois de conhecer o marido no local, que fazia uma viagem de turismo. “Nunca fui lá. Aquilo me assusta. Tenho também uma casa em Barreirinhas mas fico sem lá ir durante quatro meses”, afirma Ana Dias, a despachar porque tem de tratar do peixe e do camarão enquanto o grande fluxo de pessoas não chega. Como companhia têm dois filhos e dezenas de macacos, que procuram os restos de comida do local. Tratam os mamíferos pelo nome. “O dominante é o Severino.” Mas a estrela do local é uma garça, “a Gisele Bündchen”. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Ao contrário do que muitos pensam, os Lençóis Maranhenses não são apenas areias e lagoas, mas também vegetação, muita vegetação. De Barreirinhas é possível apanhar um barco para descermos o Rio Preguiça, que continua a trabalhar incessantemente, com as suas marés a ditar o ritmo do passeio. Durante a viagem, por diversos momentos estamos cercados por autênticas paredes verdes, com vários metros de altura, não vislumbrando uma única duna. É através de barco que chegamos à vila de pescadores de Mandacaru, que tem como principal atração a barraca do Domingos, que vende caipirinhas, com vodka ou cachaça, de todo o tipo de fruta, e o Farol de Preguiça, que pertence à Marinha do Brasil. São 160 degraus e uma vista de 360º de 35 metros de altura. Devido ao elevado número de visitantes, temos apenas 10 minutos para ver a impressionante paisagem (é possível inclusive ver o mar), com um marinheiro, localizado no portão de entrada, a mandar descer ao do som de um apito (não sabemos o que acontece se nos atrasarmos, mas as ordens foram claras antes de entrar: “Quando ouvirem o apito, desçam!”…). Entre o cais e o farol somos abordados por guias mirins, entre os seis e 12 anos, que contam carinhosamente sem parar algumas das histórias do local. Os risos são quase impossíveis de esconder, pois o discurso é decorado e, se interrompido, provoca de imediato desorientação na criança. Irlan Santos, de 10 anos, recita o poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, um dos principais poemas da literatura brasileira, escrito em Coimbra, em 1843. A viagem prossegue até Atins, ponto de encontro entre o rio Preguiça e o Oceano Atlântico. Seja de carro em cerca de 20 minutos ou a pé (2h00), o destino obrigatório é o Restaurante Canto do Atins, que consegue ser a maior atração dos Lençóis Maranhenses para os amantes da boa mesa, superando inclusive as suas lagoas. Tudo devido ao Camarão da Luzia, considerado por muitos o melhor do Mundo. Se o turista vai a Roma para ver o Papa, não pode regressar dos lençóis do Maranhão sem provar a sua iguaria. Uma das figuras da região, Luzia nasceu em Atins, passou 14 anos na capital São Luís numa casa de família e regressou sozinha para uma vila de pescadores. Cresceu como muitas mulheres brasileiras, no braço, contra tudo e contra todos. Frontal, não se perde em rodeios, diz tudo na cara, como reconhece o marido Zé do Aço, com água salgada nas veias. Entre risos, explica que o seu nome surgiu depois de uma bala perdida ter chocado no seu peito e voltado para trás (história de pescador?). Já J. Júnior diz que se deve a um facão que usava na pesca. “Quando Luzia chegou aqui rolou logo a química e não deu outra. Construí na altura a casa dela. Ela pedia um quarto para uma cama individual, eu dizia que era pequeno para acolher a nossa cama de casal; ela pedia a cozinha com determinado tamanho, eu dizia que era pequena para acolher todos os nossos filhos. Entre risos, ela perguntava: ?Quem disse que vamos casar?? A verdade é que aqui estamos.” Luzia não tem tempo a perder, a cozinha chama incessantemente por si. No entanto, faz questão de agradecer a Júnior o apoio que recebeu ao longo dos anos, quando ninguém a conhecia e era o guia a trazer os visitantes para o seu estabelecimento. Nesse pequeno gesto fica demonstrado todo o seu carácter. Em relação ao segredo do molho utilizado no prato Camarão Grelhado Aberto, que faz as delícias dos gourmets, nenhuma palavra… Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Termos a real noção do tamanho dos Lençóis Maranhenses só é possível pelo ar. Por terra o fascínio e o deslumbramento é absoluto, mas só pelo ar temos a consciência da sua dimensão. Em Barreirinhas há um aeródromo e um Cessna, um avião com dois motores, pronto para sobrevoar os lençóis. Não se assuste se vir uma moto no meio da pista de decolagem. É ela que impede os animais de invadir a mesma, o que acontece também na aterragem. Lá em cima, apenas um conselho: feche a boca. Devido à beleza da paisagem, mas também porque o piloto faz por vezes algumas gracinhas que podem provocar a saída do coração…
Nota: Canção do Exílio, de Gonçalves Dias