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Encruzilhada do Tabuão. Ao nosso redor, seis cruzamentos, seis caminhos que partem e levam a destinos desconhecidos. Um local especial. Principal ponto de oferendas no passado, ainda hoje ali se acorda com cachaça, galinhas mortas, farofa nas esquinas. Em pleno Pelourinho, o passado e o presente confundem-se em cada ângulo reto, côncavo, perpendicular das suas ruas, Por tudo isto, a capital da Bahia é um local privilegiado para conhecer a raiz de um país: diz-se nas suas calçadas que, ao conhecer Salvador/Bahia, conhece-se o Brasil. Ah, que bom você chegou Bem-vindo a Salvador Coração do Brasil (do Brasil) Vem, você vai conhecer A cidade de luz e prazer É no Pelourinho que encontramos Carlos Augusto Alves Pereira, 57 anos, conhecido por Big devido à sua altura: 1m64. A sua loja de quadros não é mais do que uma espécie de fachada para meter conversa. Mas é ali que ele faz a ligação com a comunidade local; foi Big quem privou com Michael Jackson quando a estrela norte-americana gravou o seu vídeo They Don?t Care About Us (é possível tirar uma foto com uma peruca na varanda onde o cantor pop atuou), mas relacionou-se também com Jorge Amado, Raul Julia, Spike Lee, Danny Glover e Kofi Annan e muitos outras figuras mundiais, algo comprovado através de um livro com fotos e autógrafos, que mostra com orgulho. Big diz que reconhece os turistas pelo cheiro, “pelo sabão que usam na roupa”. Nem Oprah Winfrey escapou ao seu paleio, embora Big não a conhecesse nessa ocasião, em 1995. “Eu morava no primeiro andar e ela foi ver os meus quadros, quando fazia um programa sobre Salvador. Acabou por ficar para o almoço, uma feijoada preparada pela minha mãe. Pediu para regressar num outro dia, para comer novamente a feijoada. Eram oito homens e ela. Evidentemente que imaginei que era uma pessoa importante. Acabei por ficar na produção do programa. No final, a Oprah entregou-me uma revista em que estava na capa. Foi aí que descobri quem era. Na despedida disse que, quando fosse a Chicago, falasse a qualquer taxista no seu nome que eles me levariam a sua casa. Deu-me ainda 10 mil dólares.” Na esquina ao lado da loja de Big está o Pelé da Bahia, mas em vez da bola temos o berimbau. Natalício Neves da Silva, 78 anos, 68 vividos na arte de gingar, é o mais velho mestre da capoeira em atividade. Viveu a marginalização, o esplendor e a massificação da luta, “quando a gente fina começou a aceitar que os seus filhos praticassem capoeira”, na década de oitenta. “Antes era coisa de vagabundo”. Presidente da Associação Brasileira de Capoeira Angola, Mestre Pelé da Bomba, que aprendeu o seu ofício na rua, acredita “no poder libertador que a roda de capoeira representa”, assim como a sua ginga “representa muito do que são os nossos 500 anos de história”. História é o que encontramos no salão de Moacir Oliveira, 52 anos, mas histórias do dia-a-dia. Entre um corte aqui e outro ali e através das damas, o barbeiro (cabeleireiro) conhece todo os segredos do Pelourinho. O local, com uma arquitetura bastante peculiar, é ponto obrigatório para qualquer passante, principalmente os moradores do centro histórico. “Somos quatro irmãos. Todos temos atividades paralelas, mas a nossa barbearia está sempre aberta”, refere. À frente da Fundação Casa de Jorge Amado, tambores e outros instrumentos de percussão descansam no chão. Minutos depois, o poder do som espalha-se por todo o Pelourinho, um som que ficou mundialmente famoso devido ao Olodum, que tem a sua sede no centro histórico de Salvador. Criado em 1983, esta ONG já conseguiu retirar das ruas vários jovens consumidores de drogas e vítimas da prostituição. A força dos tambores conseguiu formar até ao momento cerca de oito mil adolescentes. Entre eles António Carlos Santana, 48 anos, conhecido como Pacote do Pelô. Catador de papel, lavador de carros, vendedor de picolé (gelado) e amendoins torrados foram apenas algumas das suas atividades para sobreviver. “Trabalhava com qualquer coisa que garantisse o meu sustento.” Criança de rua, juntou-se ao Olodum. “No começo tocávamos com latas de leite no lugar da percussão. Os palitos de churrasco eram as baquetas.” No Olodum participou em trabalhos com Michael Jackson, Paul Simon e Jimmy Cliff. Hoje é professor de percussão do Olodum e um dos responsáveis pelo projeto social “Tambores e Cores”, criado em 2000 “Temos cerca de 40 crianças e os ensaios são ao ar livre, às terças-feiras e sábados, cerca de duas horas. Este projeto é dedicado às crianças que ficam o dia inteiro vadiando pelas ruas.” Imperturbáveis, os tambores soam com força e convidam os visitantes a desfrutar da beleza do seu ruído, numa atuação que invade e embala todas as ruas do Pelourinho. E se há som que define um lugar, o dos tambores é sinónimo do centro histórico de Salvador. Correndo atrás do trio Vai compreender que a baiano é: Um povo a mais de mil Ele tem Deus no seu coração E o Diabo no quadril Quem nunca usou uma fita de Nosso Senhor do Bonfim nem sequer sonhou. Em Salvador sonha-se em todo o lado. Inclusive no Elevador Lacerda, “a forma mais rápida do baiano subir na vida”. São 72 metros e é de lá que vemos a Baía de Todos os Santos (a baía que dá o nome ao Estado, que tem um “h” como fator de diferenciação), onde está o Forte de São Marcelo. Se Salvador é considerado o coração do Brasil, aqui temos o seu umbigo. Para ver de perto este reduto defensivo é necessário fazer um passeio de barco para a Ilha da Itaparica, já que o forte está fechado ao público. Ter uma casa naquela ilha, com seus 50 km de praia, é o sonho de qualquer baiano. Salvador tem 380 km2, enquanto a ilha soma 280 km2 (é a terceira maior do Brasil). Se na capital da Bahia temos três milhões de habitantes, aqui são 70 mil, que sobem para 400 mil na temporada alta. Antes de desembarcamos no “paraíso”, fazemos escala na Ilha dos Frades, com 8km2 e cerca de 70 moradores que vivem da pesca e do turismo. Recentemente um empreendedor turístico comprou parte da ilha e brevemente vai construir um resort, o que está a causar um enorme celeuma, pois esta supostamente é uma área de proteção ambiental. “Todo baiano é neguinho, negro ou negão, depende da sua constituição física”; “O baiano tem fama de não trabalhar muito. É mentira, trabalha moderado para viver mais”; “Let’s go comigo”; “No Carnaval as mulheres piram e em novembro pairam”. Estas são “pérolas da rua” que saem como metralhadoras da boca de Edson Jorge, 30 anos. Ex-menino de rua, é hoje guia em Itaparica. “O maior orgulho da minha vida foi construir a casa da minha mãe.” Diz que é guia desde os cinco anos. Tem a ginga própria do baiano/brasileiro. Quando soube que éramos originários de Portugal, sorriu e comunicou para os outros elementos do tour: “Atenção pessoal! Os portugueses de que falei há pouco eram muito antigos, os atuais são superinteligentes, muito espertos, não têm nada a ver com os seus antepassados.” É em Itaparica que temos a fonte do rejuvenescimento. “O filme O Estranho Caso de Benjamin Button foi inspirado aqui. Cada gole de água rejuvenesce cinco anos. Mas atenção, ela não faz ressuscitar, não vale a pena colocar nos calções”, enfatiza Edson Jorge. No local há três torneiras. “A primeira dá saúde, a segunda oferece anos de vida e a terceira dinheiro. A última não funciona. Tirem uma foto antes e depois de beberem. Não se preocupem se não rejuvenescerem agora, o efeito é de 48 horas. É preciso ter fé.” Com um sorriso nos lábios deixamos Itaparica, terra de João Ubaldo Ribeiro e de tantos outros vultos da cultura baiana, do passado e do presente, como Jorge Amado, Ivete Sangalo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, etc. We are Carnaval We are folia We are the world of Carnaval We are Bahia
Fé. Os cultos religiosos proliferam em Salvador, com uma população de 19% de negros e 33% mulatos. “Esta cidade é um património do negro. O negro é o ADN de Salvador”, defende a mãe Sinha, responsável pela Casa Branca do Engenho Velho, a primeira casa de candomblé aberta na capital da Bahia, o primeiro monumento negro considerado, em 1984, Património Histórico do Brasil. Com um sorriso fácil, Ekede (Yyalorixá, mãe dos Orixás) Sinha defende que o candomblé é hoje a principal religião da cidade, “embora muitos ainda tenham medo de expressar o seu culto.” Líder de um dos principais terreiros da cidade, Ekede Sinha procura principalmente cultivar os valores do candomblé no seu espaço, “que é um local de acolhimento e proteção” “Aqui ensinamos a costurar o nosso próprio vestuário. Temos o cuidado de resgatar o saber-fazer, defender a nossa cultura.” Ecletismo é o que encontramos em Salvador, seja religioso ou cultural. É na Praia do Porto da Barra que testemunhamos essa realidade no seu esplendor. São apenas 600 metros de areia, mas é onde as principais tribos urbanas se encontram. Não foi por acaso que nasceu aqui o Tropicalismo, o Movimento Novos Baianos; não é por acaso que o pôr do Sol mais famoso da cidade acontece neste local, que apresenta um painel de azulejos com a chegada do português Tomé de Sousa, governador-geral do Brasil aquando da colonização, assim como um marco comemorativo da fundação da colónia. Outro ponto-chave da cidade é o bairro Rio Vermelho, noite boémia de Salvador. É lá que encontramos o Acarajé da Dinha, um dos mais famosos do país. A música acompanha os nossos passos noctívagos por todo o lado, o baiano não consegue viver sem a cadência e a melodia de um ritmo musical. O som que move os minutos das vidas de Emilia Bidala, 55 anos, e Valdelice Silva, 72. Moradoras do Pelourinho, vêm pacificamente a vida passar pela porta das suas casas. Reclamam da falta de eventos no centro histórico se comparado com o passado recente. Acreditam que a magia perdeu-se. “Mas isso não impede a maravilha de ser baiano. Somos abençoados pelo Senhor do Bonfim. Somos alegres e acolhedores. O ontem passou e vivemos o hoje. É essa a nossa filosofia de vida, seja ela benéfica ou não.”
Nota: Letra de We Are Carnaval, de Jammi e Uma Noites