Levanto a cabeça e é nesse momento que os vejo. São só dois. Mesmo assim não os consigo evitar. São tão brancos, quase só altura, daqui penso que lhes toco a sombra.
(viram-me?)
Volto ao meu arroz. Imagino-me na vida deles mas continuo dentro do meu arroz. Como será a sua casa? O que fazem? Porque vieram aqui? Limpo as mãos ao longyi* como se antecipasse o cumprimento. Sinto a fotografia.
(a mim?)
Afastam-se, de chapéu-de-chuva a tapar o céu azul, de braço dado como nos filmes. Saíram do ecran e estão aqui, quase ao meu lado. Sigo-lhes os passos escondido no meu chapéu.
Vejo que o U Myint Aung os chama. Aprendeu aquela língua em que se fala Inglês. É o único que tem televisão. Vemos lá muitos filmes de herois e lutas e histórias de amor. Quando entro estão os três sentados a falar o que não entendo.
Sentado no banco de madeira, não saio do meu silêncio.
(viram-me?)
Imagino-os a irem embora pela televisão e estranho quando se levantam e vão de tuk tuk.
Acenam-me com um sorriso.
Levam-me numa fotografia sem saberem quem sou.
A Birmânia tem um roteiro turístico, fora dele viajar torna-se difícil. Kyaukme tem apeadeiro e uma guest house. Estamos no limite da rota.
O tuk tuk saltava à medida que a estrada ia ficando pior, anunciando ao som de barulho a nossa chegada. Nos campos os trabalhadores fatigam. Nas estradas os monges peregrinam. Nos pátios as crianças brincam. Todos nos olham. As crianças, sempre mais curiosas e atrevidas, lançam-nos adeus com todas as mãos ao ar e dizem as palavras de estrangeiro que aprenderam na escola e em cinema. “I love you” gritou a mais afoita, todos rimos.
A imagem desta Birmânia rural fica gravada entre duas árvores, duas quando deveriam ter sido apenas uma. O perfil de um homem a escapar do sol está imóvel e assim permanecerá em nós e no nosso aparelho de fotografias. A distância que nos separa é maior que os quilómetros e que a língua. É verde arroz e verde farda militar. É cheia de terra. É falta de tempo. É sem palavras. É toda a distância que a humanidade permite aos homens ter.
O que mais próximo estivemos deste país foi à mesa de U Myint Aung, numa destas aldeias fora de rota. Entre um chá e sementes de girassol indicámos num velho mapa da URSS onde fica Portugal. Dois palmos de distância. As suas escassas palavras em inglês são suficientes, o silêncio do seu companheiro, sentado à nossa frente sem voz mas cheio em sorriso, bastam-nos. Quando homens partilham não há distância que fique.
* Pano usado como saia por homens e mulheres na Birmânia