Uma viagem de 2200 km em bicicleta à Patagónia chilena e argentina, em regime de autonomia, era o sonho que acalentávamos há muito tempo. Um sonho demasiado grande para ser só nosso.
Uma bicicleta também é um objeto de sonho. Se dermos uma bicicleta a uma criança, o sonho dela realiza-se. Por isso, partilhámos a nossa viagem da melhor forma que sabíamos: viajámos a favor da Operação Nariz Vermelho, uma IPSS cuja missão é distribuir alegria pelas crianças hospitalizadas, tornando assim a doença menos dolorosa, e transformando a sua estadia em sorrisos. Por cada km que fôssemos pedalar na Patagónia, ambicionámos angariar 1 euro. O objetivo foi totalmente alcançado, e com isso mais crianças poderão continuar a sorrir. Partimos assim para a Patagónia completamente motivados, conscientes de que nenhum km pedalado seria em vão.
No imaginário de todos nós, a Patagónia corresponde a um território misterioso, longínquo, sinónimo de aventura. Foi isso mesmo que nos atraiu nessa região. Viagens em bicicleta, para nós, são sempre sinónimo de aventura e de incerteza. Nunca sabemos o que vamos encontrar! O nosso planeamento era um esboço, que poderia mudar consoante as condições que viéssemos a encontrar: o clima, o isolamento, a existência de povoados e a própria recetividade das comunidades locais, seriam os fatores que iriam determinar o desenrolar do nosso périplo por terras da Patagónia. E nunca pensámos que, de facto, viéssemos a ser tão condicionados como fomos.
Iniciámos a nossa viagem de bicicleta em Balmaceda, no Chile, e tínhamos como destino final Ushuaia, a cidade mais austral do planeta, na Argentina. Pelo caminho, cruzaríamos várias vezes as fronteiras destes 2 países, em busca dos locais mais belos do planeta: os Andes sempre ao lado, os glaciares, os parques nacionais, os lagos imensos, as montanhas nevadas como pano de fundo, e muita vida selvagem, protegida em habitats que são autênticos postais ilustrados destes dois países. Por ser um território rico em lagos e fiordes, foi preciso efetuar diversas travessias de ferry-boat, cujos horários e regularidade extremamente reduzidos, foram um fator determinante nas etapas que tivemos de adaptar, e mais uma agravante da nossa fadiga, que atingiu proporções que nunca havíamos conhecido, apesar de toda a experiência que possuímos.
“Isolamento” não chega para descrever… isolamento
Na Patagónia, a palavra “isolamento” não chega para transmitir a quase total ausência de povoados (na verdadeira aceção do termo) e de infraestruturas simples que possam servir de apoio, tais como locais para abastecer. A média diária de km foi pensada para cerca de 100. No entanto, por força das circunstâncias, fomos obrigados a percorrer médias que chegavam aos 150kms por dia, em busca de um teto e de algum minúsculo povoado onde pudéssemos comprar víveres para restabelecer e para levar para o(s) dia(s) seguinte(s). No Chile, eram as pessoas que nos recebiam nas suas próprias casas, que cozinhavam para nós e que nos cediam dormida. Este é um complemento importante na economia das pequenas povoações locais. Na Argentina, éramos muitas vezes recebidos em “estâncias”, herdades de muitos hectares onde vivem os próprios trabalhadores, em comunidades que assim se tornam autênticas aldeias.
Na Isla Grande de Tierra del Fuego, como antes já sentíramos na Patagónia, vivemos os momentos mais dramáticos relacionados com o isolamento e com a falta de povoados. Mas a hospitalidade e boa vontade de quem encontrávamos, ajudava-nos sempre a ultrapassar as dificuldades. Para essas pessoas, a nossa gratidão será eterna. Não esqueceremos o dia em que o vento lateral que nos fazia cair, nos consumiu 4h para fazer 16kms, e nos obrigou a buscar refúgio num destacamento de polícia, onde o Sargento de serviço nos deu guarida. Assim como não esqueceremos a cedência de uma instalação de bombeiros em Villa Tehuelches para pernoitarmos, bem como a funcionária da Municipalidade, que me levou à sua própria casa para tomar um duche quente, após 150kms de vento forte e sem alojamento disponível nem local onde comer.
Da Patagónia trouxemos as melhores recordações, das pessoas que nos ajudaram, das memórias fotográficas de paisagens impossíveis de adjetivar e que guardaremos para sempre, das dificuldades imensas que tivemos de superar sozinhos e sem recurso a qualquer meio de transporte alternativo… A Patagónia encerra um dos últimos territórios quase virgens do nosso planeta, em que o ser humano se sente parte integrante do habitat. A bicicleta permite essa integração e esse sentimento. A bicicleta torna-nos mais vivos, mais atentos e mais autênticos, numa busca diária pela sobrevivência num território pouco favorável à abundância. Na Patagónia transpira-se autenticidade e simplicidade…
Viagem realizada por Ricardo Mendes e Filomena Gomes.