Acordo cedo, antes do nascer do sol, enquanto ainda se pode caminhar com um pouco de dignidade e prazer, antes que o calor rebente e inunde pátios, sombras, corredores e bares. É assim Yangon nas semanas que precedem a monção, parece que todo o Cosmos conspira contra ti, para que sonhes com a época das chuvas, para que desejes que ela chegue depressa e te refresque e revitalize. Acordo e ponho-me a caminhar pela “baixa”, chamam-lhe assim em Yangon ao centro colonial, à esquadria de ruas e fachadas neoclássicas deixadas pelos ingleses, com uma ou outra árvore sem qualquer utilidade ou beleza.
Dirijo-me para o rio, são 6 da manhã, faço horas para o pequeno-almoço. O hotel tem horários estranhamento rígidos para uma cultura asiática, talvez consequência do pulso férreo com que a junta militar governa há décadas a Birmânia, que agora se chama Myanmar por decisão dela, da junta. O horário do pequeno-almoço é das 7 às 9, o do check-out é às 11. Impreterível. Tenho tempo para ambos. Hoje, mais tarde, voo para Bagan. Fará ainda mais calor, mas Bagan é outra coisa.
Junto ao rio um burburinho, uma agitação. É gente que sai do cacilheiro, atravessa da outra margem, Yangon como Lisboa, Almada aqui chama-se Dalah, os commuters atravessam para a margem norte, desembarcam na “baixa”, desaparecem nos escritórios e repartições da capital. Que tal a vista do outro lado? Porque não meter-me no cacilheiro e espreitar Yangon desde a margem sul? Avanço pelas docas, não vejo bilheteira nem encontro ninguém que fale inglês, talvez dentro do cacilheiro, entro na mesma, soltam-se as amarras e o navio desliza suavemente pelo rio. De repente, assalta-me a dúvida: e se este não é um cacilheiro? E se é um serviço de longa distância, tipo: dez dias até Mandalay, e a próxima paragem é só dentro de dois dias e meio? E o meu pequeno-almoço, o meu check-out, o meu passaporte? Entro rapidamente em pânico.
Conheci muitos marinheiros, de muitas nações. Dito assim, pareço uma “funcionária noturna” de uma esquina das docas, na realidade refiro-me apenas às semanas que passei a navegar em cargueiros durante a volta ao mundo que deu origem ao Planisfério Pessoal. Marinheiros, por exemplo, do Paquistão, do Kiribati, da Libéria, das Filipinas, da Ucrânia, do Sri Lanka. O contingente com quem me diverti mais provinha da Birmânia, tipos com quem festejei o cruzamento da Linha Internacional da Data. Uma conversa inevitável nessa noite de copos em mar alto foi sobre a situação política do país. Com uma ditadura que se auto-excluiu do resto do mundo e que depois viu essa exclusão reforçada com as sanções impostas pelo Ocidente, a vida não é fácil num dos países com rendimento per capita mais baixo do mundo. Muita gente não consegue chegar a ganhar um dólar por dia. O salário de um embarcadiço é uma aberração, uma miragem, nas aspirações possíveis de um birmanês: que importa os contratos de doze meses a bordo, depois um mês em casa, depois outra vez doze meses fora? As saudades e a solidão combatem-se pensando no benefício económico dos que ficam em casa: pais que envelhecem, filhos que crescem, uma mulher que espera mas com dinheiro para um presente digno e um futuro prometedor.
Fiquei com o contacto desses amigos, mas agora em Yangon penso que é melhor não os procurar. Por um lado, quero passar despercebido na Birmânia e ser considerado um turista normal, não um escritor em busca de material para um próximo livro e ir à procura deles pode levantar suspeitas na pide do país. Por outro, as probabilidades dos meus amigos estarem de férias em Yangon são doze contra um: os doze meses que passam embarcados, contra o mês que passam com a família.
Em pânico, procuro alguém que fale inglês. Vejo um jovem com ar de estudante, dirijo-me a ele. “Do you speak english?”, responde “of course” como se fosse a coisa mais natural do mundo falar inglês na Birmânia, na realidade a junta militar bloqueia o ensino de outras línguas e o Aungphyoming é o primeiro birmanês que encontro que fala inglês desde os embarcadiços há 8 anos. “Of course”, repete: ou és professor de inglês, penso, ou tenho andado a encontrar os birmaneses errados. Aungphyoming confirma que estamos num cacilheiro e continuamos na conversa. Chegamos à margem sul, convida-me a tomar o pequeno-almoço em sua casa, a conhecer a sua família. Aungphyoming está de bicicleta, sugere que me sente na grelha de trás. Pneus meio vazios, ruas meio desfeitas, cada pedalada um solavanco brutal. “Venho à Birmânia para ficar com o rabo num oito”, penso. Dito assim, pareço um “funcionário noturno” das esquinas das docas, na realidade já não tenho idade para andar sentado nas traseiras de uma bicicleta. Chegamos, por fim, a sua casa. É de ripas de madeira, muito pobre e maltratada. A mãe reza em frente a um pequeno altar budista, as irmãs sorriem envergonhadas, o pai come arroz branco e bebe chá, é o pequeno-almoço. São ambos costureiros. Todo o dinheiro é investido na educação do filho.
Aungphyoming estuda para mecânico de motores de cargueiro. Daí o seu conhecimento de inglês, a língua franca das tripulações do mundo inteiro. Um projeto de família, uma aberração, uma miragem. Sabe a vida dura que o espera, mas é novo, pode investir uns anos, garantir uma boa velhice aos pais, um bom casamento às irmãs, para depois regressar definitivamente e também ele casar, parar. Quem sabe se os meus amigos de há 8 anos não foi isso que fizeram.
Afinal as minhas probabilidades de os reencontrar em Yangon não eram tão baixas assim. Quem sabe? Regresso ao cacilheiro, mas desta vez recuso a bicicleta do Aungphyoming e mando parar um riquexó.